“A árvore da vida”, de Terrence Malick (2011).
O melhor filme de década passada, vencedor da Palma de Ouro de Cannes, alvo de inúmeros preconceitos e incompreensões por sua estrutura nada convencional.
Malick, sem dúvida, não é um cineasta como os outros. Ao longo de cinco décadas, desenvolveu uma linguagem cinematográfica própria e inconfundível. Filmes lentos e contemplativos, com uso abundante de uma fotografia belíssima, diálogos substituídos por uma voz interna à consciência dos personagens, cujo fluxo não acompanha necessariamente a imagem exibida, uma narrativa sempre acompanhada de uma reflexão que a matiza e ilumina (mais do que histórias, Malick filma comentários a histórias).
Em “A árvore da vida”, porém, Malick levou seu estilo a um patamar ainda mais radical. Aqui, não temos propriamente um filme, mas um poema filmado. Não há uma estrutura linear na narrativa, mas dois planos distintos, que se alternam em flashes sem ordenação cronológica, superpostos enquanto sondam o grande mistério que se quer desvendar.
Num desses planos, está a própria história da criação, em imagens deslumbrantes da natureza e do surgimento das distintas formas de vida e nas melhores fotografias de que dispomos dos confins do universo e do espaço sideral. No outro, surge a história da família O’Brien, uma família cristã no interior do Texas nos anos 1950, constituída pelo casal e por seus três filhos.
Este filme busca fazer uma aproximação da questão mais angustiante que assola o imaginário humano: o problema da existência do mal no mundo. Como é possível que a criação de Deus possa comportar a maldade e a decadência? Se Deus existe e é bom, por que não intervém? Por que morrem os inocentes em tragédias? Por que um pai maltrata seus filhos?
Após uma apropriada citação do Livro de Jó, o filme se inicia com um monólogo agostiniano da Sra. O’Brien sobre a natureza e a graça, cujos termos são a chave para o fundo do enigma do filme:
“As freiras nos ensinaram que existem dois caminhos na vida: o da natureza e o da graça. É preciso escolher qual deles seguir. A graça não procura satisfazer a si própria. Aceita que a menosprezem, que a esqueçam, que não gostem dela. Aceita ser insultada e ferida. A natureza só quer satisfazer a si mesma e fazer que os outros a satisfaçam. Gosta de tiranizá-los e que façam a sua vontade. Procura razões para ser infeliz, quando o mundo todo ao seu redor está feliz, e o amor sorri por meio de todas as coisas. Elas nos ensinaram que quem ama o caminho da graça jamais terá um triste fim".
A sequência já nos mostra o futuro dos O’Brien. A mãe recebe um telegrama informando que R. L., seu segundo filho, foi morto na guerra, aos dezoito anos. Desabando em prantos, ela questiona os céus por que se abateu aquela tragédia.
Inicia-se uma alternância entre os dois planos narrativos que constituem o filme. Somos levados de volta ao passado da família O’Brien. Vemos o casamento dos pais, o nascimento de Jack, o primeiro filho. Enternecemo-nos com as cenas da primeira infância do garoto, entre descobertas e brincadeiras. Nasce, pouco depois, o segundo irmão. E, com toda a naturalidade, sem sabermos como, no meio de toda a meiguice, surge o ciúme de Jack. Ele tenta fazer uma maldade com o irmão e é impedido pela mãe.
Ao mesmo tempo, são-nos mostradas cenas dos primórdios da natureza. Vemos aparecerem e se desenvolverem as diversas famílias de animais. Numa dessas cenas, um bicho grande, ao avistar uma espécie menor, pisa-o, paralisando-o sob sua pata. O animal agressor observa o outro e simplesmente retira a pata. Ele não tinha fome, não queria nada com o bicho menor. Apenas o maltrata, inexplicavelmente.
Em ambos os planos, somos levados a contemplar o mesmo mistério. O mal se infiltra na beleza da vida e da criação. Não sabemos donde vem, mas está dentro de nós, atormentando-nos, sem que possamos compreendê-lo nem extrair dele um sentido. Vemo-lo numa criança pequena e num animal irracional. Mesmo antes da consciência e da culpa, há uma decadência sempre presente.
Acompanhando a história dos O’Brien, vamos descobrindo que o Sr. O’Brien é um pai excessivamente rígido e intimidador. Jack, de personalidade forte, desde cedo, se revolta contra o autoritarismo paterno. A relação com o pai terreno é um reflexo da relação com nosso Pai-Deus. Quantas vezes não sentimos que Deus é esse pai sádico, que impõe milhões de regras sem sentido e que se satisfaz com a desgraça dos filhos? Quantas vezes não vemos na maldade que nos cerca no mundo uma imagem de um Deus mau, que fez o mundo assim, abarrotado de perversidade, porque quis?
No casal O’Brien, vemos ainda um símbolo dos dois caminhos da vida de que falava o monólogo inicial da mãe. O pai é a natureza. O Sr. O’Brien se apresenta sempre como um darwinista frio e materialista. Diz que precisa educar os filhos com dureza, para que se preparem para a dificuldade da vida. Ensina aos garotos que precisam ter a ganância de vencer, de competir com todas as armas. Comenta-lhes que sua mãe é demasiadamente boazinha, que, neste mundo, não se pode ser muito bom. Quem é muito bom é passado para trás pelos demais. O importante é vencer na vida, chegar ao topo.
A mãe é a graça. Amável, gentil, sempre sorridente, compassiva, misericordiosa, aparece sempre com o perdão, protege, em muitas ocasiões, os filhos do pai. Ao mesmo tempo, apresenta uma incômoda submissão ao marido e jamais se impõe. Na cena mais forte do filme, após uma altercação na mesa do jantar, em que os dois filhos mais velhos responderam ao pai, que reagiu violentamente, arrastando-os para prender cada um num canto de castigo, a mãe permanece passiva, tomada de susto e de desgosto. Em seguida, ela vai à cozinha, onde está o marido. Depois de ouvir nova recriminação sua, ela se rebela contra ele, mas ele a imobiliza com os braços.
Assim também vemos no mundo. A natureza maltrata os inocentes, e não sentimos a intervenção da graça. A graça permanece silenciosa. Quando as duas se enfrentam, é a natureza que restringe a graça. Quantas vezes nos invade a alma essa perplexidade, ao termos a impressão de que a graça é inerte, incapaz de socorrer-nos da crueldade que reina na terra?
Em outra cena, durante um passeio na piscina, um colega dos garotos morre afogado. A tragédia reverbera na cabeça de Jack. A revolta por ver uma criança inocente morrer se alinha à sua indignação contra a rigidez do pai, que ele vê muitas vezes fazendo aquilo que proíbe em casa. Em sua mente, Jack diz, tanto a seu pai, quanto a Deus: “por que tenho que ser bom, se você não é?”.
O doloroso contato com o grande mistério do mal nos leva a enxergar em Deus esse pai hipócrita, que tudo exige de seus filhos, enquanto os submete a todo tipo de maldades. Jack refaz o questionamento sentido da mãe, no início do filme, diante da morte de seu filho. Por que Deus permite isso? Como é possível?
A resposta vem numa longa sequência de imagens do universo e de suas primeiras luzes. Nesses cerca de vinte minutos de contemplação do cosmos, internalizamos a resposta divina dada a Jó na famosa citação que abre a película (“Onde estavas tu quando lancei os fundamentos da terra?...”).
Deus criou toda a imensidão do universo, e os céus dos céus nada são perto dEle. Sua Sabedoria vê tudo, todos os seres, no passado, no presente e no futuro. Nós conhecemos apenas nossa limitada realidade e nossa medíocre experiência. Não temos ideia do que representa cada fato no quadro total da criação. Deus, que tudo sabe, sabe também o que permite e como extrair um bem maior de um mal superveniente. Quem somos nós para julgar o que faz Deus? Como podemos dizer a Deus como governar todas as coisas? Acaso pretendemos saber melhor do que Ele o que é bom e justo?
Entretanto, Jack ainda não tem ouvidos para captar o que Deus lhe diz por meio das coisas criadas. Sua revolta o consome cada dia mais. Ele está decidido que não vale a pena ser bom. Nem seu pai, nem mesmo o Pai Celeste são bons. Travessuras cruéis com animais, aprontos com sua mãe, cuja bondade de sempre já não o enternece, maldades consecutivas com seu irmão menor, que mantém a passividade da mãe, sem jamais reagir, sem jamais procurar briga.
Ao entregar-se às más inclinações de seu coração, porém, Jack, abismado, faz uma descoberta inquietante. Ao agir perversamente com todos à sua volta, sobretudo, os mais inocentes, indefesos e amáveis, ele vai se parecendo com seu pai, justamente com seu pai, a quem mais tem ojeriza.
Essa constatação é o início de um caminho de reconciliação, que, no entanto, vai exigir uma longa estrada de uma vida de retomada de questionamentos sobre si mesmo e sobre a vida. Ao entender que o que guarda dentro de si, que o torna tão rebelde e furioso, é a mesma maldade que crê enfrentar, ele se permite – além de voltar a tocar-se com a pacífica bondade de sua mãe e de seu irmão, que dele jamais guardam rancor – compreender o pai.
Após levar uma rasteira no emprego, mesmo tendo se dedicado com todo o seu sangue à vida profissional, o Sr. O’Brien começa a entender como é vão o modo como escolheu encarar a vida. Contrito, ele reconhece a Jack que foi duro demais com ele. O filho, enfim incorporando a compaixão, lhe responde que ele próprio é igual a si, que o entende porque sabe que, nele, há muito mais do pai do que da mãe.
Construir uma relação perfeitamente harmoniosa com este mundo tão imperfeito e tão traiçoeiro, com os nossos e com nosso Pai-Deus é a tarefa de uma vida. Os questionamentos e as dificuldades seguem para Jack, para seu pai e para toda a família. Vemo-nos sempre quebrados, feridos pela maldade que há em nós, mesmo quando só queremos fazer o bem. As dores se acumulam, e vamos aprendendo a lidar com esse grande mistério, que nunca cessa de atormentar nosso coração. Agora, Jack é um adulto, e seu irmão R. L. morreu prematuramente. A Sra. O’Brien, sempre tão bondosa, está prostrada pelo luto. Será que nem as suas preces tão fiéis podem mover essa Providência imperscrutável?
A última resposta que o filme pode nos dar vem na sequência final. Vemos toda a família O’Brien reunida, vestida de modo angelical, numa praia estonteante. Sabemos que é uma cena alegórica, pois R. L. está vivo novamente e aparece como criança. Filhos e pais se abraçam calorosamente. Os conflitos parecem estar superados.
Nesse vislumbre paradisíaco, a Sra. O’Brien vai com R. L. até uma porta, que se abre para um mar imenso, a se estender além do horizonte. Ali, ela solta a mão do filho, que corre na direção do horizonte luminoso. A voz da mulher sussurra solenemente: “Eu Lhe entrego meu filho”.
Firme a vida inteira no caminho da graça, a mãe O’Brien encontrou nela a resposta para o mistério do mal, do sofrimento e da dor. Não é possível compreender o mal. O mal é, justamente, a ausência de razão. A existência do mal sempre será um mistério.
Podemos chegar, no entanto, à solução para o mal. A cura do mal é o amor. Quando assumimos a atitude de doação total a Deus e ao bem do outro, o mal perde seu aguilhão. O sofrimento encontra um sentido. Fazemos da dor um ato de sacrifício. Quando entregamos de bom grado aquilo que nos é mais querido, mesmo entre lágrimas, redimimos a maldade. O mal se torna ridículo porque se torna fonte do bem. Sua obra já não é maligno dano, mas ocasião de entrega amorosa daquele que sofre.
A Sra. O’Brien já não perdeu um filho para a maldade do mundo, mas o entregou a Deus, fazendo-se obediente à Sua Sapientíssima Vontade, mesmo sem poder compreendê-La desde sua perspectiva terrena. O mal tornou-se mera ocasião de sua heroica abnegação, de sua amantíssima inocência, que em tudo oferece-se como vítima, para anular o poder da violência.
Um mistério inexplicável se aplaca com outro. O mal e o amor são dois admiráveis mistérios. Não podemos explicá-los com a razão, mas sabemos que o segundo é o remédio para o primeiro. Creio que este filme cumpriu seu propósito tremendamente grandioso: aproximou-se tanto dessa economia dos mistérios quanto será possível a uma obra cinematográfica.
Belíssimo texto! Pensar sobre o bem e o mal, nessa perspectiva a partir do filme do Malick foi genial!
Gustavo, que linda e sensível análise .
Continuo achando que você é amigo das palavras.
Abç.