Os terríveis simplificadores, em seu proverbial amor pelos clichês, encontram um favorito de seu deleite na separação binária antigos versus modernos. Nada os anima tanto quanto discursar a respeito do fantasmagórico fenômeno nomeado “Modernidade”, essa caixa de Pandora, síntese de toda a decadência da humanidade (ou de todas as luzes antes obscurecidas, há terríveis simplificadores de todos os lados), essa revolução total e absoluta, que abraça tudo que possa ser mais oposto “ao anterior”.
Nessa cantilena, não há vítima mais suculenta do que René Descartes (1596-1650), o pai de toda essa estrovenga. Descartes foi aquele que, por puro capricho pessoal, decidiu inventar uma nova filosofia a partir do zero. Num ato de narcísica soberba, atirou ao lixo toda a filosofia anterior apenas pelo prazer de se chamar autor de um pensamento só seu. É o arqui-inimigo, o Lex Luthor da filosofia clássica.
Enquanto historinhas de heróis e vilões excitam as mentes preguiçosas, a realidade é sempre mais complexa, mais matizada e mais árdua. Quem abandonar as ficções reducionistas dos coachs filosóficos e se dispuser a ler os textos cartesianos descobrirá que, na realidade, Descartes foi o pensador mais socrático de seu tempo, o arauto de um socratismo agostiniano, um socratismo redigido em primeira pessoa, em forma de confissão.
Descartes viveu em tempos de enorme confusão, provocada por um mundo em constante transformação. Descartes não inventou nem desejou essas circunstâncias. A Modernidade não saiu de sua cabeça, nem foi criada ex nihilo por sua filosofia, mas antes era um fato, imerso no qual lhe cabia viver e, consequentemente, filosofar.
A nova Ciência, que tomava a natureza desde um ponto de vista estritamente mecânico, vinha produzindo um assombroso avanço tecnológico. Isso, aliado à crítica de Guilherme de Occam às capacidades do intelecto humano de perscrutar o sentido das coisas, vinha gerando, por um lado, um triunfalismo cientificista e, por outro, um angustiado ceticismo quanto ao conhecimento humano das realidades metafísicas (desde Montaigne até Pascal e o jansenismo de Arnauld, todos contemporâneos de Descartes no debate intelectual francês).
A perplexidade do homem moderno era que parecia estar privado da possibilidade de saber algo sobre o sentido da vida humana e de todas as coisas, sobre as questões últimas, que, muito mais do que dados físicos sobre a gravidade ou o movimento dos astros, são objeto da busca íntima de toda alma racional.
Por um conjunto complexo de circunstâncias em que, aqui, não me aprofundarei, a queda do mundo medieval levou também a uma perda da tradição filosófica que havia se construído até então. Já não havia acesso, nas principais instituições de ensino, aos tratados de Santo Tomás de Aquino e de Duns Scot, nem à maior parte dos originais de Platão e de Aristóteles.
Descartes não viveu em nossa era, não podia baixar nos sites russos todas as obras conhecidas de toda a tradição filosófica desde a Grécia Antiga. O conhecimento que temos da história da Filosofia não existia, nem em pálidas sombras, na França do século XVII.
Os homens do início da Modernidade não tinham acesso a Tomás e à completude de seu sistema. O que sobrara eram manuais escolásticos de terceira ou quarta mão, que traziam lições fragmentadas de disciplinas tratadas fora de contexto. Não havia qualquer sistema orgânico, capaz de sustentar uma cosmovisão autenticamente filosófica.
Descartes, embora tivesse, com os jesuítas, estudado com esmero a filosofia medieval, não tinha à mão nenhuma “tradição” além de livros escolásticos que recolhiam peças soltas do que um dia fora o sistema tomista. Estava diante da ausência de um sistema de pensamento para um mundo cada vez mais descrente de uma filosofia viva e em evolução, mergulhado em opiniões que se multiplicavam ao sabor dos ventos de cada dia, sem que houvesse terreno sólido para que fossem testadas, aprovadas ou rechaçadas.
É nesse mundo que Descartes assume a fundamental tarefa de refundar a Filosofia, de encontrar um caminho seguro para que o filosofar possa progredir em direção a respostas bem fundamentadas. E o caminho que escolhe não é nada mais do que o velho projeto socrático, tão antigo quanto a própria Filosofia: um autoexame da razão humana, a fim de identificar, com segurança, o que realmente podemos afirmar com certeza e o grau de legitimidade próprio de cada juízo que emitimos.
Descartes cria (e nisso também retomava os antigos) que o juízo é um ato e, como tal, deve ser feito com responsabilidade e é julgado moralmente. É dever moral do homem não afirmar aquilo que não sabe e, por conseguinte, não tomar por saber qualquer opinião não filtrada por um rigoroso autoexame da inteligência. Entre a dúvida razoável e o acerto casual, a primeira é sempre preferível.
Quem ler a primeira das “Meditações metafísicas” cartesianas reconhecerá imediatamente o procedimento da dialética socrática. Com efeito, se ocultarmos a autoria da obra, o leitor, despido dos preconceitos das terríveis simplificações, poderia perfeitamente tomá-la por um diálogo platônico – ou, ao menos, por um híbrido de Platão com Marco Aurélio ou com Santo Agostinho já que escrito não em diálogo, mas em meditação.
Descartes inicia afirmando que, antes de tudo, é preciso distanciar-se das opiniões mais comuns que nos assaltam cotidianamente. É necessário buscar o modo mais imparcial possível de submetê-las a uma crítica rigorosa, de forma a verificar se realmente podem sustentar-se. Trata-se do primeiro passo da maiêutica, famoso procedimento socrático que consiste em afastar as opiniões acríticas para que se possa dar à luz a verdade filosófica, fruto da crítica árdua de um intelecto que aprende a proceder apenas retamente.
Descartes, então, propõe que se adote como método a dúvida universal. Que duvidemos de absolutamente tudo, não só das crenças metafísicas e das opiniões injustificadas, mas dos nossos próprios sentidos e de toda e qualquer evidência que possamos tomar como tal. A estratégia cartesiana é que, se adotarmos como pressuposto o ceticismo absoluto e, mesmo assim, apenas com isso chegarmos a alguma verdade, tal verdade será completamente inegável uma vez que extraída a partir do maior ceticismo possível.
Quase tudo já foi objetado a esse procedimento cartesiano. Afirmam que não se pode começar a Filosofia com a dúvida e que isso é completamente arbitrário e antinatural. Mais uma vez, tomam Descartes sem nenhum senso da realidade em que viveu. Seu mundo era o mundo da dúvida. O ceticismo era a cor padrão das opiniões filosóficas que corriam em seu tempo.
Descartes filosofava a partir de seu tempo, desde as questões e as angústias dos homens com quem convivia – que, aliás, é a única forma sensata de se filosofar (por isso mesmo, sempre fracassarão os cruzados antimodernos que querem fazer Filosofia como se vivêssemos na pólis ou num convento dominicano do século XIII). Reprovar Descartes por “começar pela dúvida” seria o mesmo que reprovar Sócrates por “começar por opiniões sofísticas”.
Por sinal, não é a dúvida um estado existencial fundamental para o homem? Não é o questionamento que nos leva ao pensamento sobre as camadas mais profundas da realidade? O infinito e insistente “por quê?” da criança não é uma evidência de que nosso intelecto é feito de dúvida, tanto quanto de maravilhamento ante a realidade enfim conhecida?
O mais importante, entretanto, é perceber que a dúvida metódica é, em essência, um brilhante exemplar da ironia socrática. A ironia é a etapa destrutiva da maiêutica, que consiste em tomar a opinião pré-existente e sujeitá-la à inquirição racional, de modo a fazê-la cair em contradição em seus próprios termos.
A dúvida universal é metódica, não real. Descartes jamais propôs que realmente duvidássemos de tudo (porque, obviamente, isso é impossível e absurdo mesmo), mas simplesmente que adotássemos essa dúvida como método de pensamento, que raciocinássemos supondo tal suspensão de juízo.
A proposta cartesiana pode ser enunciada “Já que está em voga o ceticismo em variadas versões, vamos assumir o ceticismo mais brutal e analisar onde chegamos seguindo-o. Se atingirmos alguma verdade, teremos demonstrado a contradição de tal ceticismo”. É a ironia, sem tirar nem pôr. Descartes não quer nos fazer mergulhar na dúvida, mas, ao contrário, conduzir os que já estão nela mergulhados a sair de tal estado.
Com efeito, a segunda meditação nos mostra o resultado da dúvida universal. Por mais que eu duvide de tudo, não posso duvidar de que estou duvidando. Se duvido de tudo, então, afirmo, sem poder contorná-lo, que duvido – e disso não há dúvida. Daí decorre a conclusão: Dubito, ergo cogito, ergo sum (“Duvido, logo, penso; penso, logo, existo”).
Esse é o famoso argumento do cogito – ele próprio uma citação direta de Agostinho. Por ele, chegamos a uma verdade autenticamente inegável porque se impõe mesmo quando, por absurdo, assumimos um ceticismo total como pressuposto. Eis a primeira evidência, um princípio sólido para todo conhecimento: o eu.
A evidência primária do eu é pilar fundamental para toda a filosofia moderna. A consciência inevitável do eu que nos constitui é o que nos põe definitivamente além das fronteiras dos fatos mecânicos da Física. Somente o ser racional é capaz de pensar a si mesmo como um eu, uma pessoa que se impõe conscientemente ao mundo desde uma realidade interior, que escapa completamente à percepção empírica, mas que não pode ser negada. O eu é nossa abertura ao transcendente, é a origem existencial da Metafísica e a refutação de todo cientificismo.
Descartes pavimentou o caminho para a reconstrução do filosofar no mundo moderno. A partir da nova maiêutica cartesiana, foi apontada a trilha pela qual seguirão todas as escolas da Filosofia até os nossos dias, com seus progressos e desvios.
Penso que os passos seguintes de Descartes, a partir da terceira meditação, foram em falso. Ao defender que a primeira ideia clara do intelecto humano é Deus (por uma espécie de argumento ontológico, em cujo sucesso não creio) e buscar extrair de Deus o conhecimento das realidades empíricas, traiu o próprio método socrático e inverteu a própria prescrição para o reto raciocínio – que deve sempre proceder modestamente, do mais próximo e acessível ao mais árduo e abstrato.
Permanece, todavia, o fato de que as “Meditações metafísicas” são o grande exercício moderno da maiêutica – e o parto a duras penas realizado é, para nós, um lumiar para o reencontro de muitas verdades tão antigas e tão novas.
Muito bom, professor! Sou um iniciante no curso de filosofia. Me parece que seria um erro grotesco, em nome do amor e zelo à filosofia clássica, desprezar a moderna. Penso que assim já se corrompe o propósito mesmo da filosofia.