Desde 2019, criei o hábito de publicar minha lista pessoal de melhores filmes do ano (sempre com bastante atraso, como se pode ver, pois demoro a ver os filmes novos). As listas dos anos anteriores estão publicadas nas minhas redes sociais. Se houver interesse, posso trazê-las para cá também.
É inevitável a conclusão de que a pandemia afetou muito a produção cinematográfica. Se, em 2020, ainda víamos com benevolência as poucas boas obras que conseguiram surgir mesmo em meio à circunstância conturbada, em 2021, a ausência de filmes empolgantes se repetiu.
Houve um ou outro filme de excelência, mas nenhuma obra dos últimos dois anos que superasse, por exemplo, “O caso Richard Jewell” (meu filme favorito de 2020), terminado antes da Covid. Já forçando a barra, juntei seis filmes para a minha lista de 2021, que apresento agora, em ordem crescente de minha preferência:
06 – “Rushed”, de Vibeke Muasya
Um filme muito pouco comentado, mas cuja história me tocou pessoalmente. A personagem central é Barbara O’Brien, uma mãe católica irlandesa muito devota. O filme a mostra rezando o terço diariamente, no meio da correria dos afazeres; entre uma Ave-Maria e outra, escapa-lhe um palavrão e se impacienta com os filhos. Barbara é uma cristã da vida corrente – cuja fé se ferve nas panelas da cozinha e se purifica nas fraldas das crianças; e que, com grande simplicidade, não esconde suas imperfeições e sua insignificância.
A vida de Barbara é atingida por uma terrível tragédia familiar: Jimmy, seu filho mais velho, morre num “trote” de uma fraternidade universitária. A partir daí, torna-se a missão de sua vida conseguir justiça para seu garoto. Em toda a sua jornada, ela guarda a companhia de Nossa Senhora, a quem fala com intimidade de quem compartilha o dom e as dores da maternidade.
Um segundo ato de envolvente suspense na busca por testemunhos e provas, um terceiro ato de obscura e violenta vingança. Um filme que coloca toda a luz e a tragédia da vida humana num conto de miséria e de redenção.
05 – “A escavação”, de Simon Stone
Um filme para os apaixonados por História. Trata-se do relato da descoberta do túmulo de Sutton Hoo, um dos maiores achados arqueológicos de todos os tempos. A viúva Edith Pretty contrata o escavador Basil Brown para investigar o terreno de sua propriedade, o que resulta na impressionante descoberta. O encontro dos artefatos atrai as autoridades do Museu Britânico para as terras de Pretty, acabando com a paz da viúva e do humilde profissional autônomo. Naturalmente, todos querem os méritos e a fama pela descoberta extraordinária, enquanto, talvez, seja o destino dos homens ordinários que tanto fizeram pela humanidade no silêncio de suas casas permanecerem ocultos, recebendo apenas a mais secreta das glórias.
04 – “Meu pai”, de Florian Zeller
O crítico norte-americano Roger Ebert definia o cinema como “uma máquina de empatia”. Dois filmes recentes encarnaram com perfeição essa frase: “O som do silêncio”, de Darius Marder (terceiro lugar na minha lista do ano passado) e este “Meu pai”.
No filme de Marder, o brilhante trabalho de edição de som nos coloca na perspectiva de um baterista que começa a perder a audição. Aqui, somos transportados para dentro da cabeça de Anthony, um velho que sofre de Alzheimer.
O filme nos faz sentir todo o horror da confusão mental do senhor que vai perdendo a lucidez. A narrativa vai perdendo a linearidade. As cenas começam a se repetir, com diferenças. Às vezes, sua filha Anne, que cuida dele, é casada e aparece ao lado do marido; outras vezes, é solteira. Em algumas ocasiões, altera-se o seu rosto. A disposição dos móveis e dos quadros da casa vai mudando a cada dia.
Colocamo-nos dolorosamente no lugar desse pobre homem, que começa negando a ajuda dos demais e se afirmando autossuficiente e, pouco a pouco, vai aceitando, como uma criança, a fragilidade de sua condição.
03 – “Cry Macho”, de Clint Eastwood
A única possibilidade de uma lista anual minha não contar com um filme de Clint Eastwood é ele não ter feito filme aquele ano. Sua última empreitada, em que ele volta às telas também como ator, do alto de seus noventa e um anos, é mais uma obra imperdível, ainda que rejeitada pela crítica (que, quando se trata de Eastwood, não costuma acertar).
O personagem de Eastwood, desta vez, é Mike Milo, um velho cowboy de rodeio, heroico em seus dias de glória, há muito aposentado. Um homem de alma pesada, fustigada pelo peso de uma vida e pela melancolia do encontro próximo com a morte, como todos os recentes heróis eastwoodianos.
Mike atende a um pedido de seu chefe Howard para ir ao México buscar seu filho Rafo, que vive lá com a relapsa mãe, exilado nas ruas praticando brigas de galo e sofrendo abusos. Mike é o herói sem rumo que se encarregará de dar rumo à vida daquele adolescente, deixando que venha à tona a oculta sabedoria que carrega em seu coração desgastado.
Um filme que, por algumas falhas de roteiro e de atuação, não está no nível de “Gran Torino” ou de “A mula”, mas que, ainda assim, é muito melhor do que quase tudo que o cinema contemporâneo produz.
02 – “A lenda do Cavaleiro Verde”, de David Lowery
Um belíssimo épico, que promove uma releitura ousada do mito arturiano “Sir Gawain e o Cavaleiro Verde”. O corpusarturiano possui em sua gênese uma tensão entre elementos pagãos e elementos cristãos. A proposta de Lowery, em sua versão, é contar a história do jovem herói que aceita o desafio do misterioso Cavaleiro Verde, que aparece em Camelot com ameaças e enigmas, desde o ponto de vista pagão. O mundo aqui construído é um mundo trágico, abandonado às arbitrariedades do destino. Sir Gawain é um rapaz confuso e relutante, confessadamente imperfeito e frágil, não um herói de virtudes modelares.
Para os cristãos, tal versão pode parecer incômoda, mas o ponto de vista a partir do qual se conta a história é cristalino e sincero, e a visão de mundo que nos apresenta é exemplarmente construída, com grande consciência da tradição em que se insere.
01 – “O contador de cartas”, de Paul Schrader
Se eu já fizesse minhas listas em 2018, “Fé corrompida”, o filme anterior de Paul Schrader, seria, sem dúvida, o primeiro colocado daquela temporada.
Schrader, como crítico de cinema, escreveu sobre o cinema transcendental de Ozu, Bresson e Dreyer. Como cineasta, no entanto, manteve-se, ao longo de sua carreira, preso à condição de parceiro de Scorsese e jamais foi além da mediocridade dos clichês da Nova Hollywood. Até que decidiu fazer, agora, uma “trilogia bressoniana”, em que abraça o estilo ao qual se dedicou na literatura.
“O contador de cartas” é o segundo filme dessa trilogia (o terceiro – “Master Gardener” – sai este ano; já estou ansioso). Trata-se da história de William Tell, militar que foi torturador na prisão de Abu Ghraib, no Iraque. Por seus atos, ele esteve preso por dez anos e agora leva uma vida solitária, jogando cartas pelos cassinos do país, sem residência fixa nem identidade pública. William vive assombrado pelas culpas de seu passado, e sua alma clama por redenção.
A oportunidade surge quando ele conhece Cirk, um rapaz cujo pai também foi torturador em Abu Ghraib e acabou se matando e que agora acalenta um plano de vingança contra o major que os treinou e que nunca foi processado. William procura ajudar Cirk, tentando afastá-lo da vingança e levá-lo a recuperar sua vida.
Um brutal conto de redenção, de uma redenção falhada e acidentada, consoante imposta pela fraqueza da natureza humana, mas que mantém até o final a consciência da necessidade de se expiarem os pecados.