“A felicidade não se compra”, de Frank Capra (1946).
Se tivesse que escolher um único filme favorito, nomearia este clássico natalino do gênio Capra.
Trata-se de um filme que, de modo emocionante e inspirador, penetra-nos a alma ao nos pôr diante de nossa vida, de nossas buscas mais íntimas, de nossos mistérios, de nossas batalhas, de nossas dores. O drama de George Bailey é o que todos carregamos no âmago de nossa alma, conscientemente ou não. Que estamos fazendo aqui na terra? O que buscamos com nossa vida? Que queremos realizar? Em que pomos nossa esperança?
George Bailey é um rapaz brilhante e de grande coração, filho de um empreiteiro muito querido no pequeno vilarejo de Bedford Falls, conhecido por ajudar os moradores do local a comprarem casas dignas, fazendo empréstimos em boas condições e renegociando as dívidas dos que se encontram em dificuldades, escapando assim às garras do Sr. Potter, ganancioso magnata dono de boa parte da cidade.
George, desde a infância, sabe se desdobrar para ajudar os demais. Não perde uma oportunidade de servir à família e aos vizinhos. Entre outros episódios que vamos conhecendo, quando criança, atirou-se na água congelada para salvar seu irmão, que se afogava, contraindo uma infecção de ouvido que lhe tirou a audição da orelha esquerda.
George é conhecido por sua inteligência admirável e suas grandes ideias. É, sobretudo, um homem de elevados sonhos. Quer deixar o vilarejo, cursar a universidade, ir a Nova Iorque, fazer grandes coisas, influenciar o mundo. Todos creem em seu futuro e reverenciam seus planos magnânimos.
Entretanto, sempre que ele está pronto para sair de Bedford Falls e ir atrás de seus projetos, é impedido pelas circunstâncias. No momento em que estava tudo preparado para iniciar a faculdade, seu pai sofre um derrame e vem a falecer. O conselho da empresa apenas admite seguir com o funcionamento se George assumir a direção. Do contrário, venderiam o empreendimento a Potter, o que significaria a destruição de toda a obra do velho Bailey.
George, então, fica comandando a empresa familiar, ao lado de seu tio Billie, o trapalhão, enquanto seu irmão vai à universidade em seu lugar, combinando que ele regressaria para substituí-lo no cargo. O irmão, de fato, volta quatro anos depois, mas com uma novidade: está casado com a filha de um megaempresário, que lhe ofereceu um posto de direção em seus negócios. George não permite que seu irmão recuse a oferta e, mais uma vez, prorroga sua estada na cidade natal.
O tempo passa, e George jamais tem a oportunidade de fazer no mundo as coisas a que sempre aspirou. Acaba ficando em Bedford Falls, casa-se com uma amiga de infância, tem com ela quatro filhos. Vive, no comando da empresa, sempre grandes sacrifícios; o negócio está em constante apuro por se manter fiel à missão de dar aos mais necessitados as condições mais generosas para que cheguem a possuir uma morada aconchegante.
No clímax do filme, George está com a corda no pescoço mais uma vez. As trapalhadas do tio Billie levaram a problemas no caixa da empresa, e o protagonista corre o risco de ser preso. Desesperado, pensa em matar-se na noite de Natal.
Contudo, quem passou a vida fazendo o bem, certamente, não encontrará solidão. Entre família e amigos, orações chorosas invadem aos brados os céus. George se dirige até a ponte e, quando vai atirar-se, seu anjo da guarda pula na água na sua frente. O homem, então, salta, já não para o suicídio, mas para salvar o desconhecido que pede socorro.
Após retirar a misteriosa figura da água, ela lhe revela que é um enviado da Providência Divina. Um cético e amargo George lhe diz que não quer a ajuda dos anjos. Sua vida foi um desastre, um rotundo fracasso; não conseguiu fazer nada do que queria, seus talentos e seus sonhos foram inúteis, passou a vida preso a um vilarejo escondido no meio do nada; enfim, seria melhor se jamais tivesse nascido.
O anjo, então, lhe retruca que pode lhe conceder esse desejo: levá-lo a um mundo em que ele não existe. George é, então, transportado à hipotética realidade em que ele jamais veio a ser concebido.
A cidadezinha já não se chama Bedford Falls, mas Pottersville, pois foi inteira comprada por Potter. Todos moram nos miseráveis cortiços do magnata, endividados até a alma. A empresa dos Baileys há muito foi à falência. No cemitério, pode-se avistar a lápide de seu irmão, morto afogado quando criança (pois George não estava lá para salvá-lo). Sua mãe, viúva e tendo perdido seu único filho, é uma amargurada dona de pensão. Tio Billie há muitos anos vive num sanatório. Sua amada esposa é uma triste solteirona.
George, enfim, entende o valor de sua vida. Chora e se arrepende; a quer de volta, com todos os seus padecimentos.
O felicíssimo título dado a este filme no Brasil capta com exatidão a sua essência. A obra-prima de Capra é um tratado sobre a felicidade.
Uma lição mais fundamental nos mostra que a felicidade não é, como hoje se pensa, um açucarado sentimento momentâneo, algo etéreo e subjetivo, cujo conteúdo cada um concebe para si a seu bel-prazer, conforme os desejos que lhe brotem em cada instante. A felicidade não é a satisfação dos desejos, não “depende de como cada um se sente”. A felicidade é um dado objetivo, constatável pela razão. É a plena realização da natureza humana. É o atingir a perfeição em todas as nossas potências pessoais. A felicidade está em dar um sentido à nossa vida, em dirigir nosso intelecto ao que pode satisfazê-lo eternamente.
“A felicidade não se compra”, porém, nos leva mais além. Esse primeiro passo sempre esteve claro na cabeça de George. George jamais foi um sentimental, ou um egoísta. Seus sonhos são verdadeiramente grandiosos e sonhados com espírito reto. Quer empregar seus talentos em projetos que possam melhorar a vida de todos. George é magnânimo: sua aspiração é servir ao mundo com amor. O sentido que informa sua vida não é mesquinho, mas justo e plenamente humano.
A história de George nos revela que há uma complexidade maior na equação da nossa vocação. Muitas vezes, mesmo nossos planos justos e verdadeiramente bons são obstaculizados por necessidades que exigem de nós um sacrifício ainda maior. Não que deixemos nossos desejos e caprichos pelo serviço ao próximo, mas que deixemos mesmo nossos melhores ideais, ideais já de sacrifício e de serviço, por um amor ainda mais excelso.
O drama de George não é que abandonou seus quereres comezinhos e soberbos para viver suas obrigações, mas que abandonou seus projetos sonhados com espírito magnânimo, com alma desprendida e generosa, por circunstâncias aparentemente absurdas e acidentais.
George teve (como reza o título original “It’s a wonderfull life”) uma vida maravilhosa não porque dedicou todos os seus dias a grandiosos empreendimentos de levar o bem à sociedade, mas porque abriu mão até mesmo desses excelentes empreendimentos para viver uma caridade maior, uma caridade que de ninguém seria exigível, além de toda a medida de justiça.
George poderia ter ido à universidade e deixado que os acionistas de sua empresa a conduzissem como quisessem. Não faria nenhum mal se procedesse assim. Não seria réu de nenhum pecado se o fizesse. Mas, por amor, abriu mão de uma vida melhor para salvar a grandeza da missão social de seu pai.
Ele poderia ter admitido que o irmão cumprisse a sua promessa e sacrificasse sua chance de ter uma carreira brilhante. Era, afinal, de justiça: ele próprio havia se sacrificado anos antes pelo irmão. Mas o amor vai além da justiça e do contrato; o amor quer o que é impossível de ser desejado, e George se sacrificou uma segunda vez pela felicidade do irmão.
Encontrar um sentido para a vida é encontrar uma vocação. E nossa vocação é sempre um chamado ao que há de melhor na humanidade. Não encontraremos nossa vocação enquanto não nos decidirmos a largar nossas comodidades e caprichos e a fazer de nossa vida um sacrificado serviço ao próximo, em busca da verdade e do bem. Isso é um fato.
Todavia, muitas vezes, mesmo quando vamos atrás do que vemos, com a luz da inteligência, que é o que melhor que podemos fazer na vida, nossa vocação não se realiza em nossos projetos magnânimos, mas em providenciais acidentes, aos trancos e barrancos. Deus nos dá dribles. Em muitas ocasiões, mesmo quando pensamos que estamos trilhando uma estrada que nos leva a excelsas realizações, somos bruscamente chamados, sem que o possamos compreender, a missões absurdas, que parece que nos desviam do caminho. É o Todo-Poderoso nos tirando para dançar.
É quando lembramos que não somos senhores da vida. Que pouco podemos contra o rumo dos acontecimentos. Nossa vocação não está em traçar planos mirabolantes, por mais bem-intencionados que sejam, mas em fazer, em cada momento, em cada encruzilhada, aquilo que seja mais amor.
George pensava que não havia feito nada do que queria. Enganava-se. De fato, não cumpriu suas metas pessoais. Porém, como vimos, em cada decisão que tomou, não estava obrigado por nenhuma força a fazer o que fez. Fez por amor. Portanto, fez sempre o que quis, no sentido mais profundo e oculto de “querer”. Que é o amor senão o mais violento e radical querer, um derramar da vontade sobre a coisa amada?
Já que tanto discorremos sobre a vocação, o filme transparece a alma de um cineasta que fazia de sua arte uma plena vocação. Capra entendia seu cinema como uma missão apostólica de levar bons valores aos lares e aos corações. Ele sabia que a beleza encanta e arrasta. A arte nos ensina a viver e a amar. Sua obra-prima é a mais perfeita realização do desígnio de seu divino trabalho.
O mais impressionante de tudo é que Capra consegue nos levar a tão profundas reflexões sobre nossas vidas mantendo um estilo leve, divertido e familiar. É um diretor avesso à brutalidade e à linguagem hermética. Em “A felicidade não se compra”, nada é filmado em vão, cada segundo nos mantém presos a detalhes da trama, muitas vezes por efeitos cômicos e surpreendentes. A memória desse diretor é uma perpétua recordação de que é possível produzir um filme divertido sem deixar de tocar o transcendente.
Um filme magnânimo como poucos na história, assim como a vida maravilhosa de seu protagonista.
Belíssimo. Um presente.