“O irlandês”, de Martin Scorsese (2019).
Em geral, não recomendo muito o cinema de Scorsese. Normalmente, sua mente doentia nos apresenta perturbadoras distorções da realidade. Um católico nitidamente heterodoxo, a religião é um elemento constante de suas obras, quase sempre diluída numa bizarra receita de morbidez e de blasfêmia.
Seu último filme, no entanto, apresenta uma importante virada em seu cinema característico. Aqui, os elementos da obra scorsesiana estão retamente ordenados a uma magnífica reflexão sobre as profundezas da alma humana e nossa vital necessidade antropológica e sobrenatural de confessar nossas culpas. Podemos dizer que, enfim, Scorsese atingiu um equilíbrio artístico, como talvez nunca antes em sua carreira.
O filme conta a história de Frank Sheeran, um caminhoneiro veterano da Segunda Guerra Mundial, que trabalhou durante toda a sua vida como assassino de aluguel para a máfia. Contudo, não se trata de uma mais uma história de crime comum. Durante três horas e meia, a narrativa se desenvolve em planos lentos, sem sobressaltos, com uma trilha sonora de fundo constante e monótona.
Só entendemos a razão disso quando nos damos conta de que toda a película se passa numa confissão. A história é contada desde um asilo de idosos, onde o velho Sheeran espera a morte, acompanhado pelo capelão. A primeira cena nos chama à atenção para isso. De cara, somos levados pelos corredores do lar, onde nos saltam aos olhos uma imagem de Nossa Senhora e uma estátua de Santa Teresinha a adornar o ambiente. O plano aberto nos faz explorar o lugar até chegarmos a um alquebrado Sheeran, cujo relato de vida vamos ouvir.
Muitos se cansaram e se entediaram com a longa duração, o ritmo excessivamente calmo e a narrativa paulatina, entrecortada por eventos marginais de obscura relevância desse filme. É que a obra não quer tratar das tramas e dos tiroteios de criminosos famosos, mas entregar-nos um convite à empatia com o idoso Sheeran, um miserável pecador, um homem quebrado por uma vida de horrores, que, em seus últimos instantes, quer abrir-nos a alma chagada, em busca de uma derradeira esperança de redenção.
Penso que Scorsese tenha uma intenção pedagógica em realizar um filme anormalmente longo. Trata-se de um modo de despertar-nos para um drama humano tão próximo. Temos aqui um idoso a contar sua vida, como nossos avós em nossas casas. Não é, por acaso, assim que um velho relata suas reminiscências mais vivas e mais fortes em seus corações? Com demorados detalhes, perdendo-se em subtramas acidentais, em tons constantes e monocromáticos?
Num mundo tão mergulhado em agitações e ativismos, Scorsese lança-nos um desafio. Será que não vivemos mais interessados em ações cheias de adrenalina do que em escutar as últimas confissões de nossos avós? Será saudável que estejamos buscando grandes cenas épicas em vez de olhar para um pobre velho, preso a uma cadeira de rodas, ansioso por deixar-nos o último legado que ainda lhe resta: suas memórias e sua biografia? Assistir a “O irlandês” é virar essa chave: não viemos aqui para acompanhar uma epopeia do mundo da máfia, mas para abrir nosso coração à dor de um homem ferido por uma vida afundada na lama.
A história de Sheeran se desenrola no entrecruzar de dois mundos. De um lado, a máfia, representada por Russell Bufalino, chefe da família que controla o crime local. De outro, a política norte-americana, particularmente Jimmy Hoffa, presidente do importante Sindicato dos Caminhoneiros, que cultiva uma amizade com Sheeran após ambos serem apresentados por Bufalino.
A imersão de Sheeran no mundo do crime o vai cada vez mais apartando de sua família. Esse processo é sinteticamente encarnado na personagem de sua filha Peggy, que atua como uma testemunha moral silenciosa das atrocidades cometidas pelo pai. Peggy, sempre a espreitar o pai com um rosto fixo, duro e inexpressivo, é a imagem externa da consciência de Sheeran, cada dia mais maltratada pelos rumos de sua vida.
A trama biográfica de Sheeran se precipita numa colisão entre os dois mundos antes referidos. Os desejos de ascensão política de Hoffa se chocam com os interesses da máfia, e os chefes decidem pela sua execução. Bufalino encarrega Sheeran de tão terrível tarefa. Sheeran é, então, obrigado a escolher entre sua lealdade a Bufalino (e a preservação de sua própria vida) e sua antiga amizade com Hoffa.
O assassinato de um amigo, tão próximo à sua família, muito querido pela filha Peggy, marca o ponto decisivo da decadência moral de Sheeran. Sempre intuindo o que se passa, uma horrorizada Peggy rompe definitivamente qualquer relação com o pai. Inicia-se o afastamento final de Sheeran de todos os seus, que redundará em sua triste solidão na casa de idosos, no fim de sua vida.
A sequência que nos mostra a morte de Hoffa representa muito bem tudo o que foi dito sobre as intenções de Scorsese neste longa-metragem. Durante cerca de meia hora, reina o silêncio, cessando completamente a trilha sonora. Vemos, praticamente em tempo real, cada movimento de Sheeran, enquanto pega o carro com seus cúmplices, passa uma primeira vez pelo restaurante em que se encontra Hoffa, cruza-se com o amigo, leva-o à casa designada, mata-o com um tiro na parte de trás da cabeça. Tudo isso com um realismo seco. O tempo de angústia enquanto tudo se prepara se arrasta por mais de vinte minutos, enquanto a morte de Hoffa se dá num relance, numa fração de segundo. Interessa viver o drama de Sheeran muito mais do que assistir a uma boa cena de tiros.
Agora, vemos um Sheeran idoso, encarando sem anestésicos o fim de seus dias. A consciência da finitude lhe pesa enormemente. Quer preparar-se para a morte. Vai comprar seu caixão, adquire um lugar para ser enterrado no cemitério. No início do filme, Sheeran conta, referindo-se a seus dias na Guerra, que, com os demais compatriotas, costumava obrigar os alemães capturados a cavarem sua própria cova, antes de fuzilá-los. Diz que jamais entendeu por que eles obedeciam, uma vez que seriam mortos do mesmo jeito. No fim, assistimos a Sheeran fazendo exatamente aquilo que lhe parecia tão bizarro naqueles alemães: cavando sua própria cova. Preparando, com muito cuidado, o lugar de sua morte.
O filme inteiro nos alerta, a todo o momento, para a finitude da vida, para a universalidade de uma morte que iguala os poderosos criminosos e políticos ao último dos pobrezinhos. Textos surgem na tela ao lado do rosto de personagens novos informando-nos as condições de sua morte.
Quando os mafiosos alertam Sheeran de que estão dando um ultimato a Hoffa, ele transmite o recado ao amigo, usando a expressão do meio de que “as coisas são o que são” (“it is what it is”). Hoffa reage pasmo e furioso àquela constatação de que a realidade se impõe até mesmo a ele. Por mais poderosos que sejamos, há sempre homens mais poderosos do que nós. E a Senhora Morte traz o mesmo fim para todos, fazendo de qualquer poder patética impotência.
Sheeran recorre ao sacerdote. Tenta contar-lhe tudo, mas seu espírito ainda reluta. Diz que não sente nenhum arrependimento pelo que fez, ao mesmo tempo em que não deseja morrer naquele estado, com as culpas atadas aos ombros. O padre, então, lhe retruca que o arrependimento não é um sentimento, mas um ato da vontade. É possível chegar à contrição dizendo a Deus que não sente nada, mas que pede perdão, que deseja, do fundo da alma, livrar-se de todo o mal que fez.
Todo o sentido do filme desemboca na última cena. A câmera nos traz de volta ao asilo, reconstruindo o cenário da sequência inicial. Desta vez, com um plano que vai se fechando, de volta ao quarto de Sheeran. Tornamos a ver a imagem da Virgem, agora menos nítida. Se, antes, o mundo se abria a partir das memórias do irlandês, agora tudo o que vimos se remete à intimidade do fundo da alma do velho.
Dentro do aposento, descobrimos que estivemos assistindo a uma confissão sacramental. O padre tem a estola sobre os ombros, não deixando dúvidas do que se trata. Após terminar, enquanto o sacerdote vai saindo, Sheeran lhe pede que deixe a porta entreaberta, pois não gosta de tê-la completamente fechada. A câmera vai se afastando junto com o capelão. Pela fresta deixada na porta, vamos nos despedindo de Sheeran.
Permanecemos no mistério de quanta atrição verdadeira conseguiu o hesitante e destruído Sheeran. A história inteira de tudo o que lhe pesava a alma ele não conseguia pôr para fora, para saldar inteiramente sua imensa dívida. Não quis contar ao FBI, nem ao sacerdote fora da confissão. O relato completo é feito exclusivamente ao expectador, que neste filme ocupa o lugar de Deus. Apenas ao Criador Sheeran pode abrir sua alma chagada. Teria ele reconhecido Deus na confissão sacramental? Somos otimistas se supomos que foi exatamente naquele tribunal da Penitência que a história do filme foi integralmente contada?
A película termina com a porta entreaberta, estabelecendo um diálogo com a cena final de “O poderoso chefão”, em que Michael Corleone fecha a porta na cara de sua esposa. A porta fechada de Corleone marca o ponto decisivo de sua derrocada, com o completo encerramento de sua alma a tudo e a todos (num processo que vai acabar em redenção, no terceiro filme da série, mas isso é outra história).
A porta entreaberta de Sheeran é uma imagem da esperança. É a imagem de um homem que fechou todas as portas de sua vida ao longo dos anos. Incapaz de amar, afastou progressivamente sua família, que já não o visita. Não lhe restou companhia, a não ser a sombria morte que se avizinha. Esse homem, agora, definhando, quer deixar a porta de sua alma – a última que lhe sobra – aberta para Deus.
Não acompanhamos Sheeran até o último suspiro. Não temos certeza de como foi sua morte. O filme nos deixa com a esperança. Lembramo-nos de que Deus não desiste de dar-nos a Mão até o último instante. Mesmo o mais horrível dos criminosos pode acalentar, num recanto secreto de seu espírito tão enegrecido pela maldade, a esperança da redenção. A luz dessa esperança brilhará para nós até o leito de morte, se lembrarmos de deixar entreaberta a porta de nosso coração.