“A festa de Babette”, de Gabriel Axel (1987).
Perguntado sobre seu filme favorito, o Papa Francisco escolheu esta belíssima obra-prima, das melhores coisas já legadas pelo cinema, vencedora do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Este conto singelo e delicado coloca em cena uma virtude rara e não muito popular na literatura: a magnanimidade. Se você tiver alguma dificuldade em entender ou em explicar o que é a virtude da magnanimidade, este filme é a perfeita encarnação dessa excelência humana.
Somos transportados até uma vila perdida no interior da Dinamarca. Ali, vive um austero pastor luterano, com suas duas filhas – Martine e Philippa. Pregador de um rigoroso ascetismo puritano, que despreza o mundo material, ele ensina as jovens a aborrecer a ideia de casamento e de projetos mundanos e a desejar apenas uma vida dedicada ao ministério de Cristo.
Em sua juventude, cada uma das moças tem uma oportunidade de encontrar o amor longe dali. Martine é cortejada por um belo oficial de cavalaria sueco, que, por fim, tem que deixar o povoado para cumprir seu dever social e acaba por casar-se com uma dama da corte da Rainha Sofia.
Já Philippa se cruza com um barítono francês chamado Achille Papin, que passa uma temporada de convalescença na localidade. Papin se oferece ao pastor para dar aulas de canto às suas filhas. E é assim que se enamora da moça. Esse episódio se resolve numa cena que exemplifica bem a sutileza artística do modo de filmar de Axel, que sabe apresentar, com maestria, uma crônica intimista que dispensa arroubos épicos e imagens fortes.
Enquanto lhe ministra uma classe, Papin, sentado ao piano, com Philippa cantando ao seu lado, insiste em olhá-la de soslaio, com desejo. Sem interromper a música, Phillipa manifesta em seu rosto claro desconforto. Todos entendemos a sensação de estar sendo invadida, violada em sua intimidade. Não é preciso um assédio, uma demonstração brutal. Uma troca de olhares nos transmite tudo o que se revolve no coração da jovem.
Depois disso, Philippa comunica ao pai que não quer seguir com as aulas de canto. O pastor transmite o fato a Papin, que, dispensado em sua paixão, deixa a vila. Desse modo, ambas as irmãs decidem permanecer ao lado de seu pai, no serviço religioso da comunidade. No entanto, o episódio de Papin alterará decisivamente a sua história muito tempo depois.
O filme nos leva trinta e cinco anos adiante. Já falecido o pastor, as duas irmãs, agora duas senhoras, dão continuidade ao ministério do pai. Sem a liderança moral do antigo vigário, a convivência da comunidade foi se deteriorando com o tempo, surgindo rusgas e ressentimentos entre os vizinhos e mesmo dentro das famílias.
Até que, inesperadamente, um dia bate à sua porta Babette, uma cozinheira francesa que perdeu tudo na guerra civil em seu país natal. Ela traz apenas uma carta do velho conhecido Papin, que a apresenta e a recomenda como uma criada de primeira linha. As irmãs dizem que não podem pagar uma criada francesa de alta classe, mas a desesperada Babette responde que só quer trabalhar e só precisa do teto para morar.
A alegria católica de Babette traz vida nova àquele povoado austero e puritano. O contraste entre a nova criada, que em tudo procura servir aos demais, perfeccionista em todos os detalhes, mas sempre com um sorriso e valorizando cada aspecto da vida material e cotidiana, como se fosse uma heroica batalha pela salvação do mundo, e os hábitos recheados de um ascetismo rigoroso e triste do povo dali vai tocando invisivelmente os corações, e os horizontes insulares daquela comunidade perdida no norte vão se abrindo.
Um dia, Babette recebe da França um bilhete premiado de loteria, que lhe vale cinquenta mil francos, dinheiro que lhe permite se restabelecer em sua terra natal.
Após uma emocionada despedida, estamos diante da cena central do filme. Babette deixa a casa das irmãs e contempla o horizonte. A paisagem celeste é a imagem de sua vocação. Seu coração hesita. O olhar perdido nos transmite o questionamento que assola a alma de Babette: estará o seu destino em partir para os grandes empreendimentos das melhores cozinhas de Paris, ou em permanecer incógnita naquela vila oculta, onde pôde derramar o seu amor numa vizinhança tão necessitada? O aparentemente grandioso horizonte que se ergue por trás do oceano a faz olhar para seu horizonte interior, para o chamado de seu coração.
A atração da missão do dia a dia da vida ordinária é maior, e, num suspiro, Babette dá meia-volta. Regressa à casa das irmãs e se oferece para, antes de partir, preparar, às suas expensas, um jantar francês para a comemoração do centenário do pastor.
Nos dias seguintes, Babette, enfim, traz àquela provinciana localidade a grandeza de quem conhece o mundo cosmopolita. Os modos austeros e circunspectos daqueles pietistas se horrorizam com a chegada dos requintados ingredientes do banquete, que incluem tartarugas e animais exóticos. As irmãs chegam a falar em bruxaria e a lamentar terem aceitado a proposta desse jantar.
Chega, enfim, o dia. Os moradores que frequentam a casa das irmãs se reúnem para o jantar festivo. Ao longo do banquete, as restrições de todos se desarmam e, paulatinamente, vão compreendendo a importância da festa para a vida humana. A deliciosa ceia, preparada com capricho em cada pequeno detalhe, desperta a todos para a alegria de uma vida vivida com leveza, com amor e não com rancor, com perdão e não com mágoas.
As pequenas desarmonias que vinham carcomendo a convivência dos comensais vão se resolvendo e se instala à mesa um clima de serena amizade, que convida ao perdão e ao termo dos antigos conflitos que vinham sendo remoídos de modo mesquinho.
Eis que o filme arremata seu majestoso hino à magnanimidade. A virtude da magnanimidade é ter o coração grande, que não se contenta com qualquer coisa, mas deseja legar à humanidade à sua volta sempre as obras mais elevadas. O magnânimo pensa sempre grande, sonha sempre com o melhor, com um amor que seja excelsa realização, obra magnífica de homens grandiosos.
Contudo, magnanimidade não é ambição. A ambição é a corrupção da magnanimidade. O ambicioso quer coisas grandes para si, para sua própria vaidade. A ambição busca a própria glória, a própria elevação. O magnânimo, ao contrário, quer a grandeza como legado para os demais. Sua grandeza é seu serviço aos outros, é a marca de seu amor. Seus sonhos carregam um propósito maior, que nunca é o interesse próprio.
A magnanimidade concebe obras que custam muito, sem trazer nenhuma vantagem pessoal para si, mas simplesmente porque valem a pena. O banquete de Babette é o produto de sua magnanimidade. Ela quer empregar seu talento numa obra culinária de elevada magnitude, que se imprima perpetuamente nas almas provincianas daquele povo que a acolheu. A grandeza de sua arte toca os espíritos endurecidos dos comensais, que entendem, sem um raciocínio consciente, o valor dos bens superiores da vida.
O jantar de Babette traz uma oculta imagem da Eucaristia. É a ceia que se faz com o sacrifício da cozinheira, na qual se encerra o ciclo do conflito e do desamor na comunidade, restaurando entre eles a paz e a harmonia.
As irmãs também se sacrificavam pela comunidade, tendo-lhes devotado toda a sua vida. Faltava, entretanto, algo a seu sacrifício – era um sacrifício pesado, animado por um espírito asceta frio e sem vida. O sacrifício de Babette é feito com a alegria do amor. Babette se doa com um sorriso nos lábios e faz de seu sacrifício uma grande festa. Não despreza os detalhes mais prosaicos da vida, mas, ao contrário, os transforma no material de sua grande obra de amor. Onde só havia uma virtude seca e abnegada, Babette traz a quente luz da caridade.
É, todavia, apenas na última cena que nos é revelada a verdadeira magnitude do gesto da protagonista, que nos permite contemplar à plena luz a analogia eucarística que comentamos.
Após o fim do jantar, as irmãs vão à cozinha agradecer profundamente a Babette. Dizem-lhe que sentirão sua falta. Para a sua surpresa, Babette lhes responde que não se vai, que fica com elas. Revela-lhes que já não tem ninguém em Paris, nem dinheiro para aprumar-se. Ela gastou todo o dinheiro do prêmio naquele jantar. O banquete custou cinquenta mil francos.
Entendemos, por fim, toda a dimensão da doação de Babette. Ela foi além de uma generosa contribuição com seu esforço profissional; ela se imolou por inteiro, deu tudo o que tinha. Não lhe faltou entregar nada. Subiu à cruz despindo-se de tudo. Esse é o sacrifício que tudo limpa, que tudo redime, que faz de toda a dor e de toda a mazela uma grande festa. A virtude é admirável, mas é o amor que cura todas as feridas.
"A festa de Babette": um hino à magnanimidade
Parabéns pela análise brilhante, Gustavo! Tenho certeza de que após ler seu texto vou aproveitar muito mais as lições do filme.
Brilhante reflexão de um filme largamente aclamado, por pessoas mais devotadas à vida espiritual, e mesmo as que não o são. Suas reflexões iluminaram o sentido do filme, revelando o porquê o filme é tão aclamado, aliás acredito que muitos que o aclamem tanto não chegaram a saborear o filme e seu sentido com essa delicadeza e profundidade, mas talvez intúam a riqueza do filme, sem ter o conhecimento para traduzir o porquê ele é tão sublime. Grata. FInalmente compreendi a beleza e profundidade da obra.