Com todo o respeito a Flaubert e a Proust, o melhor dos escritores franceses, para mim, é Georges Bernanos. Não por acaso apelidado de “Dostoiévski francês”, Bernanos é o mestre da prosa profunda, visceral, a derramar em palavras as entranhas da alma humana e de sua miséria existencial.
Católico filho da tradição jansenista francesa, Bernanos é o arauto de uma fé atormentada, de um espírito consciente do dilacerante peso dos próprios pecados, de uma angústia pregada na cruz, mergulhada nas lágrimas de um mundo que ignora a própria salvação e vive agrilhoado à maldade dos homens.
“Diário de um pároco de aldeia” é um romance em colcha de retalhos. Todo ele está constituído das anotações, em primeira pessoa, do pároco de Ambricourt, uma vila perdida no interior da França. Trata-se de um retrato brutal e impressionante da consciência humana, da voz espiritual que todos carregamos dentro de nós, que julga infalivelmente a nós mesmos e ao mundo, sem que nunca possamos subtrair-nos ao seu processo. O cura de Ambricourt julga o mundo e é julgado por ele. Vive no mundo como um estrangeiro no exílio, ocupado do espírito enquanto cercado por um povo que não enxerga nada além da matéria – e da matéria mais comezinha.
A prosa barroca de Bernanos é recheada de uma aguda profundidade psicológica, conseguindo descrever-nos os sentimentos mais complexos e abstratos com recursos imagéticos sempre novos.
O pároco de Ambricourt é uma alma tomada pelo tédio. Assim se inicia o livro. Bernanos põe na pena do padre uma viva descrição de um tédio perene que, como um enorme e lento atoleiro, vai nos afogando sem que nos demos conta antes de estarmos nele imersos e fatalmente paralisados. Fala do tédio com uma poeira que vai cobrindo a nós e a todos os objetos de nossa casa. Sem perceber, respiramo-la, comemo-la, tossimo-la. Quando atinamos para nosso estado de imundície, somos obrigados a agitar-nos para sacudir fora todo o pó, essa agitação inútil do cotidiano, que nada faz contra a poeira que volta a acumular-se.
O cura sente o tédio de todas as pessoas da paróquia, metidas em suas vidas medíocres, atadas ao trabalho de sempre, à satisfação das necessidades materiais e às intrigas e caturrices de estimação. A falta de brilho espiritual de sua paróquia e de sua cidade assolam-lhe o espírito.
Doem-lhe a indiferença, a mesquinhez de alma, a baixeza de espírito e o egoísmo da gente, que contaminam sua rotina cada vez mais penosa. Não sente sua fé vibrar. A oração lhe custa. O mundo lhe parece um oceano de tédio, sem cor e sem vida. Está doente também do corpo. Seu estômago, muito sensível, não suporta nada além de pão com vinho.
O diário é uma experiência que ele decidiu fazer como forma de dar voz ao que traz dentro de si. Seu compromisso é ser, no diário, completamente franco, de uma franqueza cru e áspera. As anotações do pároco de Ambricourt carregam verdadeiramente essa sinceridade virulenta. A verdade que lhe aparece em consciência está ali registrada. No diário, não há a delicadeza dos imperativos do trato social, nem as vaidades de quem busca preservar a própria imagem. A verdade profunda de sua alma se manifesta com grande ardor e dureza.
Pelas suas notas, vamos acompanhando seus intercâmbios com as pessoas ao seu redor. E se forma cada vez mais viva a imagem de um radical contraste. O cura é um herói quixotesco num mundo de pura utilidade fabril. Enquanto todos vivem imersos no que Pieper chamou de mundo do trabalho, completamente hipnotizados pelos negócios do dia a dia, ele enxerga em tudo as profundezas da realidade espiritual.
Enquanto todos os personagens habitam a superfície do mundo, nosso pároco tem a mente tomada pela contemplação do sentido último das coisas. Suas dores são o pecado da humanidade, a ausência de amor que se esconde sob uma piedade social fria e frívola, a triste visão de tantas vidas desperdiçadas com tolices que não serão levadas para o túmulo e que nada valem aos olhos de Deus.
Onde todos veem o dinheiro para seus lucros pessoais, ele vê a avareza, a idolatria mamonista e a desgraça de um mundo materialista. Onde todos veem os hábitos e convenções de uma comunidade, ele vê uma liturgia falsa, um vazio provocado pelo trágico viver para si, sob as máscaras da urbanidade hipócrita. Para o cura de Ambricourt, a água nunca é óxido de hidrogênio. Sua mente está sempre posta no oculto, no mistério dos corações e na verdade que realmente importa.
A contemplação autêntica é loucura para o mundo do trabalho. No mundo dos preços, dos salários, das engrenagens e dos contratos, não há espaço para a vida e para a morte, para o ser e para o nada. Nosso pároco é tido em louco por todos os personagens. Sob as aparências da reverência oficial, seus paroquianos o desprezam. O comerciante que lhe abastece a sacristia e a casa paroquial exige imediatamente seus ganhos. As moças da catequese fazem troça dele. A aristocracia local o olha com superioridade.
Mesmo seus colegas padres e seus superiores, com quem se aconselha de vez em quando, homens pragmáticos, treinados na gestão eclesiástica e nas relações pessoais, tratam-no como um idealista ingênuo, cujas fantasias afastam da realidade. Julgam que sua crise interior é por falta de senso prático e por capricho. Deve raciocinar como um administrador comunitário, buscando soluções eficazes para problemas imediatos. A mística da santidade, a ocupação excessiva com juízo, céu e inferno é beatice da juventude, a ser superada com boa disciplina e atenção apenas ao cotidiano.
Assim segue a jornada do padre de Ambricourt, exilado num mundo em que ninguém vê o que ele vê, no qual suas preocupações, dores e dramas são ininteligível hieróglifos deixados por alguma civilização esquecida. Um anjo farsesco perdido entre feras silvestres.
De todos os encontros narrados na obra, o mais marcante é aquele com a condessa, em seu castelo. O padre vai até lá com a intenção de falar-lhe de sua filha, a jovem Chantal, que acudira a ele naquele dia mais cedo. Chantal já não suportava viver em sua casa. Era-lhe imposta a companhia de sua preceptora, e lhe incomodava a excessiva proximidade desta com seu pai. Pretendia sair de casa e cortar os laços com os pais.
Enquanto a condessa o recebe com a fria pompa da nobreza e repete frases oficiais, o pároco de Ambricourt, qual faca só lâmina, joga-lhe na cara, sem rodeios, o que sonda no fundo de seu coração. A condessa é uma alma petrificada, que respira indiferença à sua filha e guarda montanhas de ressentimento de seu marido.
A inquisição selvagemente sincera do jovem cura pega a senhora tão desarmada, que ela confessa aquilo que nunca disse a ninguém. Seu marido há muitos anos se faz acompanhar de todas as criadas da casa, e ela guarda toda essa humilhação dentro de si, recusando-se a abandonar os modos exigidos por seu título aristocrático. Seu rancor a cega para o mundo, só sua dor lhe importa. Não lhe interessa a dor de sua filha, que passou a desprezar.
Mesmo surpresa com sua própria disposição em fazer essa confidência, a condessa segue segura de si, assegurando que não o dirá novamente a ninguém e que tudo se manterá como está. Afinal, justifica, seu lar é um lar cristão.
É neste momento que o coração do padre borbulha de indignação. Cristão?, grita, ofendido. Cristo pode até estar na casa, nas imagens nas paredes e nos costumes devocionais, mas ele também entrou em casa de Caifás. A investida do nosso pároco se torna cada vez mais dura. Ele nomeia para a condessa os seus crimes, que redundam num ódio pertinaz que invade toda a sua vida, um ódio à sua família, um ódio à sua filha.
O destino de uma vida assim conduzida é o inferno. Segue-se um discurso inesquecível sobre o inferno, de deixar-nos meditativo por uma vida. Afirma que tendemos a imaginá-lo como uma prisão perpétua, semelhante às nossas, em que os homens maus são eternamente castigados por Deus. Acontece que o inferno não é deste mundo. Aqui na terra, mesmo o homem mais empedernido, ainda conserva, em algum recanto de seu coração, a capacidade de amar e de se arrepender. Quando falamos de ausência de amor em nosso mundo, ainda nos referimos a homens capazes de amar, de voltar a amar.
O inferno é a perda definitiva da capacidade de amar. É um estado definitivo de indiferença a tudo e a todos. Trata-se de realidade tão brutal que não é possível imaginá-la em homens. Isso porque o amor é a própria essência da humanidade. Ser homem é ser dotado de amor. A alma que decidiu não amar eternamente já não pode reconhecer-se como humana. Imaginar que sentiremos compaixão das almas infernais (e, portanto, que Deus deveria estender Sua misericórdia a elas) é não entender que tais almas já não são amáveis porque sequer são cognoscíveis. São, na expressão do padre, “pedras que um dia foram homens”. E não amamos pedras, não porque nos falte compaixão – mas porque não é da natureza das pedras serem amáveis.
A condessa já não pode negar a realidade nua que o cura de Ambricourt atirou a seus olhos. Recrimina-o por isso, porque a fez sair da letargia e tomar consciência daquilo que só lhe complica a vida. O padre a fez descobrir que, por baixo das mesquinharias de sua vida de aristocrata, escondia-se um ódio a Deus, a mais terrível das circunstâncias. Já não lhe é possível seguir vivendo como antes, presa no mundo do trabalho. Diante do que encontrou, que importam os compromissos, os jantares, a cordialidade, os negócios familiares? É preciso decidir: amar ou odiar a Deus?
Chegando a casa, o pároco de Ambricourt encontra uma carta da condessa. Ela lhe comenta que encontrou a paz. Que a esperança retornou ao seu coração e que ela decidiu confessar-se no dia seguinte. A condessa vislumbrou a realidade profunda da vida – um balançar-se diante da morte. E a terrível simplicidade dessa sentença a arrebatou; ela morreu naquela mesma noite. Enfim, preparada e reconciliada.
Em outra cena, a menina Serafita pergunta ao pároco por que ele é triste. Repara, como todos, em sua tristeza, que se manifesta todos os seus dias, mesmo em seus sorrisos. “Sou triste”, responde o cura, “porque Deus não é amado”. A resposta franciscana nada arranca de sua interlocutora. Como sempre, fala em língua marciana. Suas frases são delírios a quem nunca imaginou que possa haver um motivo de alegria ou de tristeza que não seja um lucro inesperado ou uma perna quebrada.
Na última parte do livro, o padre de Ambricourt vai a Lille, investigar com um médico seu crescente mal-estar digestivo. Descobre a causa: um câncer no estômago, em estágio terminal.
Encerramos com nosso herói, que viveu para recordar-nos do trágico peso da vida, enfim face a face com a morte, o fato inegável que encerra o sentido de toda existência, que nos tira a fórceps do mundo do trabalho, porque não cabe nele.
Bernanos não deixa de concluir sua obra sem maltratar-nos com sua crueza quase sádica. Arremata tudo com um detalhe sórdido. Neste último capítulo, em Lille, os que rodeiam o cura de Ambricourt também são moribundos. O médico que o atende está ele próprio morrendo, assim como o senhorio que lhe aluga um quarto. O mundo das frivolidades dos fúteis paroquianos é agora substituído por um mundo em viva agonia, consciente da finitude e da miséria desta peregrinação terrena.
A última nota do livro é uma carta do Sr. Dufréty, companheiro de casa do pároco, que narra seus últimos momentos. Trata-se de um dos finais mais lapidares de toda a história da literatura. O padre de Ambricourt segurava firmemente o terço e sorria com genuína alegria, como até agora não se vira. Segurou as mãos de Dufréty e pronunciou suas últimas palavras: “Que importa? Tudo é graça”.
Após uma vida assolada pelo tédio dos homens indiferentes aos grandes mistérios, nosso pároco reencontrou a paz diante da morte. Sua vida triste e atormentada carregou a trágica beleza da missão de ser aos homens uma recordação daquilo que existe além do bem-estar material.
Removida toda a poeira do supérfluo, o padre conseguiu enxergar novamente a Deus, a Quem buscou sem cessar, enquanto era tido por louco, por um idiota de sonhos quixotescos. E a simplicidade da verdade brota em seus lábios com a genial singeleza de uma mente que se gastou em pensamentos sempre elevados.
Que importam o dinheiro, as mágoas comezinhas, o prestígio social, a boa fama, o trabalho? Que importa a saúde ou a doença? Tudo é graça. Tudo é dado de presente. O mundo, tal como é, a vida e a morte. Para quem enxerga além da superfície, viver é uma dádiva gratuita, assim como morrer.
As angústias que nos assaltam quando pensamos além do mundo do trabalho, o cansaço das chateações cotidianas, a consciência de nossa pequenez diante de um destino que nos arrasta, as incompreensões de quem nos toma por tolos, a dor que nos prepara para o encontro inevitável com a morte. Terminamos a obra agradecendo por tudo porque tudo é graça. E tudo é bom.
Grande professor Gustavo! Sou teu aluno na Academia Atlântico. Parabéns pelo excelente texto. Vou comprar e ler o livro, mas o conteúdo do teu texto me fez lembrar o poema Sátira, de Raul de Leoni. Diz assim um trecho:
" 'Por que será, então, que tudo é tão pequeno
Nessa cidadezinha universal?!
As paisagens, as almas, o ideal,
As figuras, a vida, os sentimentos?!'
E, assim pensando, com piedade e com doçura,
Os gigantes, de espírito sereno,
Vão passando, sorrindo, e repassando
Por essa humanidade em miniatura...
Sim, porque é mesmo assim e sempre foi assim:
Quem vai pelo mistério das estradas,
Rumo ao país dos deuses e das fadas,
Por mais que evite ou que lute,
Tem de sempre passar por Lilliput,
Nessas 'Viagens de Gulliver' da Vida."
Valeu, professor. Um forte abraço. Deus abençoe!
Esse livro é de uma profundidade que, de verdade, jamais encontrei em outro autor literário. Curiosamente, o livro foi classificado como "mau" pelo jesuíta (acho) Garmendia de Otaola, fato que só pode se dever a uma leitura desatenta deste. Parabéns pela resenha, capturou perfeitamente o espírito do livro. O que você diria dos outros livros dele, como "Sob o sol de Satã". Vale a pena também?