Tudo o que existe possui uma lei como parte de sua constituição intrínseca. Ao contrário do que pensa certa mentalidade voluntarista moderna, as leis que regem as coisas não são um decreto de uma vontade (do indivíduo, de Deus, da sociedade) externa à sua natureza, mas uma característica objetiva dessas coisas.
A lei que rege o relógio, determinando que ele serve para dizer as horas com precisão, não é um acréscimo externo à descrição do relógio. Não é possível pensar num relógio, com todas as suas características físicas (cor, tamanho, número de ponteiros) e, só depois, num ato separado, decretar que tal objeto se presta a dizer as horas. Ao contrário, o fato de que se dirige a dizer as horas é parte da própria ideia pensável de relógio.
Da mesma forma, observando a constituição de uma jaqueira, eu compreendo que ela se dirige a dar jacas. É um fato intrínseco à sua natureza, não uma determinação voluntária de um sujeito.
Quando afirmo, portanto, que um relógio “é bom”, estou afirmando que ele cumpre a sua finalidade, que diz as horas com precisão. Isso não é um “juízo de valor”, totalmente separado da observação factual das coisas, mas um tipo de juízo de fato, tão objetivo quanto afirmar que o relógio “é marrom”, ou que “mede cinquenta centímetros”.
Também o homem possui sua lei intrínseca, inscrita no interior de seu ser. É a isso que chamamos, em Filosofia, de lei natural. A lei natural é a lei que decorre da constituição da natureza humana, que aponta o modo de se chegar à plena realização de todas as potências humanas.
Como a realidade humana é infinitamente mais complexa que a de uma jaqueira ou de um cachorro, a lei natural possui três manifestações, diferentes entre si e, ao mesmo tempo, unidas como modulações de uma mesma lei.
A manifestação por excelência da lei natural é a ética. A ética é a normativa que rege a ação humana em geral, apontando o bem a ser realizado, com vistas ao pleno desenvolvimento da natureza humana.
Certamente, o ser humano, como ser racional, guarda uma diferença fundamental com os demais objetos do mundo. O homem é livre, isto é, ele realiza a sua finalidade por decisão consciente própria. Por um lado, o homem pode decidir não cumprir sua finalidade, pode decidir agir mal, contra a sua própria natureza. Por outro, na condição racional que eleva sua natureza por cima de tudo que existe no mundo material, ele só pode se realizar plenamente por essa decisão própria.
A jaqueira não escolhe dar jacas. Ela as dá por fato vital, ou deixa de dá-las se algum acidente fisiológico o impedir. O cachorro não escolhe desenvolver sua “canidade”. Ele a desenvolve por instinto. A ética, pois, não é uma lei física, que simplesmente se cumpre factualmente. A lei natural, no homem, inaugura um âmbito distinto, que só existe nele – o âmbito moral.
O ser humano, como ser consciente de si mesmo, é capaz de agir (isto é, de mover-se por uma direção imposta por sua própria vontade) e de dar às suas ações uma lei que reconhece em sua consciência e que o impele a buscar um ideal de perfeição racional, para o qual dirige a sua vida desde uma disposição vinda do interior de sua alma.
A natureza humana, além disso, tem outra peculiaridade, da qual promanam as duas outras manifestações da lei natural. O ser humano é um ser naturalmente sociável. Ao contrário do que pensam os contratualistas, a sociedade não é resultado de um ato de vontade de sujeitos. Não existe uma separação entre o homem em estado natural e o homem em estado social. A sociedade é o estado natural do homem.
O homem só existe e se desenvolve em sociedade. Mesmo biologicamente, um homem nasce de uma mãe, e para tal é preciso a participação de um pai. A própria geração do homem invoca uma família, que é primeira e mais básica comunidade. O homem possui um nome que é dado por seus pais, fala uma língua que aprendeu em comunidade e só descobre e adquire habilidade se ensinado pelos demais. O ser do homem é um ser comunitário, e não pode ser de outra forma.
Pode existir um homem fora da sociedade, como Tarzan ou Robinson Crusoé em sua ilha. A solidão desse homem, no entanto, não é diferente da falta de um braço ou da cegueira num homem qualquer. O homem foi feito para enxergar, embora, por algum acidente, possam existir homens cegos. Da mesma forma, o homem foi feito para viver em sociedade, embora, por algum acidente, possam existir homens fora dela.
A sociabilidade intrínseca do homem gera duas manifestações distintas da lei natural – o direito natural e a política. Essas duas manifestações não são “filhas” da ética, mas fenômenos próprios, com características próprias. A esfera jurídica e a esfera política não são meras aplicações da moral, mas as três decorrem da mesma lei natural, que se apresenta em três formas diferentes entre si e irredutíveis umas às outras.
Isso significa que o direito natural não é moral. Esse é um erro comum que vem sendo cometido por jusnaturalistas contemporâneos. Desejosos de se opor ao positivismo e à sua separação entre direito e moral, fazem do direito natural uma espécie de ordenação moral que balizaria e julgaria o direito positivo.
Direito natural não é isso. Direito natural é um fenômeno jurídico, não ético. Direito natural é direito, direito atualmente vigente, tanto quanto o direito positivo. O direito natural é a lei que rege as relações humanas em sociedade, desde uma perspectiva com características diferentes da ética.
O objeto do direito natural não são propriamente os atos humanos, mas as relações entre sujeitos estabelecidas e afetadas por esses atos. O direito natural ocupa-se apenas do aspecto externo dos atos, enquanto a moral rege a consciência e seus princípios internos. Para o direito, é irrelevante se o cidadão paga seus impostos com um sorriso nos lábios ou apenas por medo da sanção.
A perspectiva jurídica é uma perspectiva de terceira pessoa, enquanto a moral é de primeira pessoa. A moral é uma lei que interpela consciências, que clama ao íntimo do indivíduo aquilo que ele deve fazer e aquilo que destrói a sua personalidade. A moral é avessa a cálculos de resultados – seu parâmetro é a bondade interior. O direito, por sua vez, ocupa-se da distribuição de bens em cada situação social. O direito olha as relações humanas desde fora e arbitra a justa distribuição que compete a cada um em cada contexto.
O direito possui a faculdade de invocar a coação para o seu cumprimento, enquanto a moral, como lei interior da integridade das consciências, está muito além de qualquer possibilidade de coação.
Portanto, na natureza das coisas humanas, existe não só uma ética objetivamente latente, mas um direito em sentido próprio. Por exemplo, se sou transportado para um país desconhecido, regido por leis desconhecidas e ali vejo uma pessoa danificar o carro de outra, sei que aquela pessoa está obrigada a indenizar o proprietário do carro. Não se trata aqui de uma obrigação moral, mas de uma obrigação jurídica. Independentemente do que digam as leis positivas daquela localidade, é da natureza daquela relação que quem causa um dano a outrem está obrigado a repará-lo. Esse princípio já é suficiente para que se possa exigir o cumprimento dessa obrigação, inclusive invocando a coação estatal.
Dessa forma, o direito é um fenômeno que nasce da natureza das interações sociais. O direito natural não é um parâmetro moral que julga o direito positivo, mas um fato, a partir do qual o direito positivo surge e forma com ele um sistema integrado. A função do legislador positivo é, antes de tudo, investigar o direito natural existente, para então especificá-lo e lhe fornecer um aparato concreto de aplicação.
Por fim, está intrinsecamente ligado à própria ideia de comunidade uma autoridade a coordenar essas relações humanas. O poder político é também uma realidade natural da humanidade, e a política é a lei que rege o exercício desse poder.
Toda autoridade vem da lei natural e é confeccionada por cada povo, em suas circunstâncias, segundo uma técnica própria, também com características próprias, que não se reduz à intelecção de princípios morais, embora com eles guarde essa identidade genética na normatividade intrínseca da natureza humana.
Qualquer abordagem jusnaturalista séria precisa ser consciente dessa tríplice estrutura da lei natural e da distinção essencial entre as três manifestações. Direito natural e política não podem ser confundidos com a moral, sob pena de jamais se construírem teorias do direito e teorias políticas verdadeiramente consistentes, que tratem de seu objeto segundo as regras adequadas, sem permanecerem acorrentadas a sermões morais que inspiram boas disposições, mas não iluminam a realidade em sua imensa complexidade.