Naturalmente, gostar ou não de futebol é uma preferência subjetiva de cada um. Não gostar de futebol é um parecer do agrado individual, tão respeitável quanto qualquer outro. Entretanto, desprezar o futebol não é uma atitude aceitável para um brasileiro.
O futebol é o fato central da nossa cultura. Um brasileiro desprezar o futebol é o mesmo que um grego antigo desprezar a tragédia. É a mais pura alienação da realidade da comunidade em que vive e uma soberba cegueira para a constituição íntima da sociedade que o cerca e que lhe dá sua identidade.
Engana-se atrozmente quem pensa que o futebol é uma mera diversão ou um passatempo, um entretenimento raso como um programa de auditório ou um jogo de dados. A importância do futebol para a formação cultural brasileira transcende completamente os limites das banalidades cotidianas.
O desprezo ao futebol é praticado por ideologias de todas as cores. Nisso unem-se os marxistas com seu discurso materialista sobre “alienação” das classes populares e os conservadores com seu ideal romântico de “alta cultura” e de “vida intelectual”, que inclui charutos, suspensórios e música clássica, mas de forma alguma as “diversões e perdas de tempo do populacho”.
Aplicar ao futebol a cantilena do “pão e circo” é passar recibo de que se vive encastelado numa torre de marfim, completamente alheio à realidade do povo a que pertence. Que triste pobreza de espírito desconhecer quantos brasileiros foram criados em meio à miséria mais absoluta, cercados por violência, abuso de drogas, prostituição, cuja única vez que conheceram a alegria em toda a infância foi nas vitórias nos gramados!
Quantos cresceram sem carinho dos pais, sem brinquedos, sem direito de ser criança, mas aprenderam a sorrir com um gol do Flamengo! Quantos não perderam completamente a esperança nem endureceram definitivamente seus corações porque, no fundo de suas memórias, ainda tinham a consciência de que existe uma felicidade possível mesmo para o mais miserável dos homens, representada por aquela taça vencida com exemplar heroísmo, por aquele gol marcado nos minutos finais, quando já não parecia haver horizonte! Quantos não foram até o suicídio porque ainda lhes restava uma alegria na vida! Quantos não se entregaram à criminalidade porque, ao menos uma vez na vida, compreenderam que é possível ser feliz vivendo honestamente!
Para uma infinidade de brasileiros sem voz, sem identidade, perdidos nas favelas e nas malocas, o gol do Flamengo foi o único Evangelho que já ouviram. Foi um único vislumbre da esperança, da fé e da alegria que tiveram no meio de uma vida desgraçada. A vitória de seu time é o seu Sermão da Montanha – é sua notícia de que os verdadeiros bem-aventurados são os pobres, os famintos, os sedentos, os desdentados porque serão consolados quando o amor remediar eternamente a dor.
O futebol é o tecido dos laços familiares, é o primeiro cordão que une os corações, é o primeiro cimento de cada pequena comunidade neste país tão imenso. Quantos filhos recebem de seus pais o time já na maternidade, e essa será, por toda a vida, a primeira e mais instintiva ligação entre eles! Quantos aprendemos a sorrir e a nos alegrar vendo nossos pais radiantes nas vitórias! Quantos aprendemos a chorar vendo nossos pais sofrendo nas derrotas! Quantos aprendemos a esperar e a sofrer vendo nossos pais entregues à tensão de um grande clássico! Quantos aprendemos a admirar e a imitar um homem que chora, que se desespera, que não sabe o futuro – um homem, em suma, que é forte e confiante, mas também humano e com coração de carne – e, assim, aprendemos que a vida também é feita de derrotas e de dores! Quantos aprendemos no estádio a amar com nossos pais, a gritar com eles, a sorrir com eles, a chorar com eles, enfim, a fazer nossa sua alegria e sua tristeza, sua conquista e seu sofrimento!
Quantos homens se sentiram as pessoas mais realizadas do mundo (muito mais do que quando cresceram na carreira ou receberam prêmios profissionais) ao viver o sonho de todo brasileiro: entrar no estádio com seu filho numa mão e seu pai na outra! Quantos se lembram de seus pais que já se foram a cada vez que seu time entra em campo! Quantos mantém vivos seus pais e seus avós ao vestir a camisa e ir ao jogo, sentindo-se nesse ato eternamente abraçados por aqueles que já não podem gritar nas arquibancadas!
Quantos pais, talvez já acamados e senis, no crepúsculo da vida, quando começam a esquecer mesmo os nomes dos filhos, ainda poderão se conectar com eles ao ouvir um “pai, o Palmeiras venceu”! E quantos pais e filhos, que as fatalidades da vida talvez tenham separado, poderão superar mágoas e distanciamentos com um simples “viu o jogo ontem?”! Um gol do Corinthians derrete muitos ressentimentos, faz nascer flores nas estradas de gelo que agrilhoavam corações amargurados.
Todos os domingos, há pais que deixam a boemia e a vagabundagem e se reconciliam com suas mulheres e com seus filhos por causa daquele gol do centroavante. Há alegria em lares assolados pelos apuros econômicos e pela doença por causa do tal gol. Há velhos enfraquecidos pela enfermidade que recobram a disposição que faltou a semana inteira por causa dele mesmo, aquele bendito (quão bendito!) gol.
É também o futebol que pavimenta a união entre as mais diversas casas e comunidades pequenas para a construção de uma única nação. Nos estádios, não há raça, classe social, ofício, preferência política. A burguesia mais remediada e o favelado que vende balas para sobreviver se sentam na mesma arquibancada. Tudo é um só o coração, diz a marchinha. Tudo é uma só torcida. No estádio, o distinto empresário xinga no mesmo vocabulário chulo do faxineiro. O estivador do Cais do Porto explica a métrica da linha de impedimento ao professor titular de Matemática da USP.
O engenheiro e o pedreiro, o diretor da empresa e o rapaz que lhe serve o café terão sempre o assunto sobre que podem conversar por horas. No gramado, encontram-se os mais desconhecidos, e aqueles que nada têm em comum trocam ideias como se fossem velhos amigos. Do banqueiro ao camelô, todos sabem que o atacante perdeu o gol, que o goleiro levou um frango. O gol é a língua universal, o verdadeiro esperanto. A bola é redenção da Torre de Babel.
O futebol ocupa o velho lugar das campanhas militares e das guerras na formação da consciência nacional. É o centro da nossa identidade como povo, da nossa pertença real a uma comunidade que vibra unida e luta unida. No futebol, vivemos nossas grandes histórias, fabricamos a literatura que nos sustenta como uma civilização sólida, moldada por suas tragédias, por suas epopeias, por seu lirismo explosivo e, em tudo, por uma catarse que transforma em energia o drama de uma gente tão combalida.
O futebol, como percebeu Nelson Rodrigues, é o remédio para o nosso complexo de vira-lata. A doença do brasileiro é a humilhação, o péssimo hábito de desvalorizar a própria grandeza e os próprios protagonistas. O futebol nos devolve o justo orgulho pela pátria. No futebol, vemos um jovem favelado pôr de joelhos as poderosas nações europeias. Vemos nossa bandeira tremular no topo dos pódios, nosso escudo enfeitar o peito dos homens que beijam a taça. No futebol, encontramos os nossos heróis, sem os quais nenhuma sociedade vive. Lembramo-nos da existência dos feitos magníficos e das grandes histórias de vitórias compartilhadas.
Com efeito, no futebol se forjam os grandes arquétipos que compõem a humanidade presente em nosso país. Qualquer um habituado aos estádios sabe que as torcidas têm temperamentos particulares, raízes particulares e uma vida própria. A torcida do Flamengo nasce da mágica mistura entre o povo marginalizado e oprimido pela vida dura e uma arrogância folclórica – o flamenguista é símbolo dessa esperança sobrenatural, que existe mesmo sem apoio em qualquer fato material, tão necessária para a sobrevida dos pobres, que o faz ter certeza de que o impossível acontecerá e, quando acontece, comentar simplesmente aos incrédulos atônitos “eu não disse?”.
A torcida do Botafogo é, em todos os detalhes, um coro de tragédia grega. A frase “há coisas que só acontecem com o Botafogo” é, para eles, uma atitude existencial. O pessimismo e a convicção de que as voltas da fatalidade destruirão até mesmo as vitórias mais certas é sua marca característica. Mesmo enquanto vence, o botafoguense carrega o semblante triste, à espera da traição da fortuna. Há torcidas unidas por seus laços ancestrais, aferradas às suas tradições e à voz do sangue, como as torcidas do Vasco e do Palmeiras, secularmente mantidas pelo sangue português e italiano, respectivamente. E assim por diante.
O futebol é a narrativa literária do nosso povo e das gentes que compõem os inúmeros “brasis” deste velho e vasto Brasil. Os arquétipos, os heróis, os anti-heróis, as histórias, as maquinações dos deuses, as tradições orais e escritas, os versos decassílabos e a prosa mais regionalista, toda a catarse e a estética de uma nação se encontram no futebol. Se somos brasileiros, somos feitos de bola, ainda que não saibamos.
Gostar ou não de futebol é do paladar de cada um. Desprezar o futebol é desprezar o país, é desprezar a cultura brasileira, é cuspir na identidade nacional e, portanto, nas próprias raízes – trata-se de postura que não pode ter cidadania no debate público sério em nossas terras.
Esse vínculo entre família e time é maravilhoso. Se meu filho não continuar palmeirense, será amado e respeitado da mesma forma, porém, nos privaremos de grandes momentos que, em função do Palestra, ainda passaremos juntos - hj ele só tem 4 anos...rs.
Boa a reflexão! Assim como enraizado na cultura, uma cultura tão rica quanto empobrecida, o futebol leva tanto à alegria e à esperança, quanto à tristeza e homicídios, pois dá azo à paixão destemperada. O mesmo menino que torce pela alegria do pai, pode temer o a frustração desse pela embriaguez e violência quando seu time perde. É um fato da cultura, certamente. Inegável. Tanto para o bem como para o mal.
Ps: faltou mencionar o Paysandu, o maior do Norte!