Normalmente, o “cartão de visitas” de toda controvérsia que envolve o pensamento de Kant é a distinção entre fenômeno e coisa em si. Para a leitura mais vulgar, aqui residiria a morte de todo realismo. Kant estaria negando toda possibilidade de sabermos o que as coisas verdadeiramente são. Não sei se isto no meu prato é um frango mesmo, pois não temos acesso às coisas, apenas a aparências fenomênicas.
Haveria, assim, uma dualidade radical entre a “coisa” e a “aparência”. Seriam como que dois entes distintos – de um lado, a “aparência”, que podemos conhecer, de outro, a “coisa”, que permanece sempre oculta.
Essa interpretação é fruto da imaginação criativa dos “terríveis simplificadores”, não de parte alguma do texto de Kant. Em Kant, inexiste esse dualismo tosco entre a “aparência” e a “coisa”. O fenômeno não é a “aparência da coisa” essencialmente distinta da “coisa” como um ente totalmente separado. O fenômeno é a coisa tal qual aparece, isto é, a coisa conforme percebida por nosso aparato humano de cognição, que é, naturalmente, limitado (Deus conhece todas as coisas de golpe, nós não – nós as conhecemos segundo nossas capacidades intelectivas).
No âmbito empírico, não existem fenômenos e númenos misteriosos por trás, eternamente escondidos de nós. Não existe o “fenômeno da pedra” e, por trás dele, o “númeno da pedra”, que seria a “verdadeira pedra”, à qual nunca chegaremos. Nada disso faz sentido.
O mundo da experiência é composto por fenômenos, ou seja, por coisas que aparecem a nós de certa forma e estabelecem uma relação com nosso aparato cognitivo. Os objetos que constituem nosso conhecimento teórico do mundo são sempre fenômenos. No plano da realidade sensível, não cabe falar de númenos, mas apenas de fenômenos.
Kant esclarece isso num tópico da “Crítica da razão pura” dedicado justamente ao conceito de númeno e à sua distinção em relação ao fenômeno. Aqui, o filósofo alemão, antes de explicar o que é o númeno, trata de mostrar o que ele não é, rechaçando dois conceitos inadequados que poderíamos formar.
O primeiro deles é justamente aquele que lhe é mais comumente atribuído pela representação vulgar: a coisa independentemente do meu conhecimento. Ora, esse conceito não faz sentido. Como conheço algo independentemente do meu conhecimento? A própria pergunta é absurda. Se me refiro a algo, já estabeleço com esse algo uma relação cognitiva. Não faz sentido falar de algo independentemente do meu conhecimento.
A segunda definição inadequada é a do númeno como objeto de uma intuição intelectual. Acontece que o homem não possui tal intuição. Não somos capazes de inteligir um objeto diretamente por sua ideia, sem passar pela experiência dos sentidos. O conhecimento humano sempre se inicia pelos dados sensíveis – não dispomos de intuição angélica.
Rechaçadas essas duas noções, resta uma possibilidade de se definir coerentemente o númeno. Da simples compreensão de que nosso conhecimento é limitado, surge logicamente a ideia daquilo que está além desses limites. Eis aqui o conceito possível de númeno: aquilo que não tem aparência, que não se dá ao nosso aparato sensível e, portanto, permanece além de nossas capacidades cognitivas.
No âmbito do conhecimento teórico, o conceito de númeno é apenas um conceito limite. Ele demarca o horizonte de nossa capacidade de intelecção, invocando uma noção daquilo que a supera. Trata-se de uma noção vazia, sem objeto, que simplesmente decorre formalmente da própria caracterização de nosso conhecimento como limitado.
Não faz sentido, em suma, falar em “númeno da pedra”. O númeno da pedra pode existir, talvez, na mente de Deus. Para nós, a pedra é sempre um fenômeno. A partir do momento que lhe chamamos pedra, já não é a pedra em si mesma. Pedra não tem nome. O mero ato de nomear já é um ato do intelecto humano. O simples fato de lhe atribuirmos um nome já demonstra que se trata de um objeto em relação com o aparato cognitivo humano. Por isso, a realidade sensível é composta não de “aparências que possuem coisas incognoscíveis por trás”, mas de coisas que aparecem a nós e como tal são concebidas, dentro dos limites espaço-temporais da cognição do homem.
Só se fala propriamente em númeno quando nos referimos aos seres metafísicos. O conceito de númeno se aplica, como dito, àquilo que não se apresenta como fenômeno, àquilo que não aparece no mundo sensível e que, por conseguinte, só pode ser pensado num plano alheio à experiência humana. É o caso das ideias da metafísica, que são basicamente três: a alma, o mundo e Deus.
As ideias da metafísica, por se encontrarem muito além dos limites da experiência sensível, não estão acessíveis ao conhecimento teórico-especulativo, próprio das ciências. O conhecimento científico, evidente e universal, está fundado em juízos constituídos por objetos apreendidos por nossas faculdades intelectuais. Deus, a alma e o mundo não podem ser reduzidos a objetos por nosso intelecto e, por isso mesmo, não podem caber em conceitos aptos a formar juízos de certeza científica. Não se fala de Deus como se afirma que “a água ferve a cem graus”.
Ao mundo numênico não se chega pelo conhecimento teórico, mas por uma autoconsciência imediata própria da natureza humana (aqui, entramos no centro do sistema filosófico kantiano, que não tenho condições de explicar inteiramente aqui; apenas me refiro a ele para seguir a exposição do tema do texto).
O ser humano possui dentro de si um “fato metafísico” inafastável: a liberdade. Ao contrário das demais ideias metafísicas, a liberdade não pode ser posta em dúvida sem imediata contradição prática. Todo ser humano, necessariamente, ao agir, necessita supor que é livre, isto é, dotado de uma causalidade absolutamente independente das causas mecânicas do mundo material. Até mesmo para se negar a liberdade é preciso pressupor que se é livre para defender tal tese e que os demais são livres para concordar com ela.
A liberdade abre para o homem a porta para o mundo transcendente. O homem descobre em seu interior uma dimensão totalmente diferente do mundo dos fatos materiais – o âmbito prático. É no âmbito prático que o ser humano encontra as verdades últimas da metafísica, chegando a Deus e à imortalidade da alma. Também por essa porta aberta a reflexão humana pode unir numa compreensão de mundo o absoluto encontrado no âmbito prático ao fundamento suprassensível da natureza que aperfeiçoa seu conhecimento científico (tudo isso é uma longa história, que certamente será contada em textos futuros sobre a filosofia kantiana).
Dessa forma, o homem é o único que realmente comporta uma dualidade “fenômeno” e “númeno”. Isso porque ele é, ao mesmo tempo, um ser sensível, que pode ser percebido em sua estrutura física e biológica e um ser inteligível, que necessariamente pensa a si mesmo como uma inteligência livre capaz de se impor ao mundo. Essa dualidade, entretanto, não é entre dois “entes” distintos, mas entre dois pontos de vista sob os quais o mesmo ser pode ser compreendido.
Podemos dizer, em conclusão, que a distinção entre fenômeno e númeno é antes uma distinção entre o “mundo fenomênico” e o “mundo numênico”. Ela assinala dois planos distintos da realidade – o mundo sensível e o mundo metafísico, transcendente. Não se trata de misteriosas “coisas em si”, completamente incognoscíveis, que estariam por trás das meras aparências imaginadas por um indivíduo transcendental solipsista.
Cuida-se, em verdade, de uma realidade transcendente, real no sentido mais próprio, estável no ser, que serve de fundamento à realidade sensível, composta por fenômenos contingentes e particulares. É uma distinção que pode ser analogada à diferenciação platônica entre o mundo sensível e o mundo das ideias (que também precisa urgentemente ser bem compreendida e libertada de espantalhos que a tornam ridícula). É, em suma, a distinção entre a superfície da realidade, captada pelos sentidos sempre de forma particular e confusa, e as profundezas do ser, nas quais reside o interesse da investigação filosófica e o sentido último de nossas vidas, que nossos corações tão desesperadamente buscam, mesmo inconscientemente.
O labirinto das más interpretações, enfim, nos afasta de uma verdade, a uma só vez, tão mais simples e tão mais profunda. Mais simples porque muito distante das loucuras supostas por quem projeta uma separação esquizofrênica entre “aparência” e “coisa”. Mais profunda porque nos conduz ao centro mesmo de todo filosofar e de toda visão de mundo.
Que pena perder as delícias de um grande gênio como Kant por cair na teia de aranha das simplificações estéreis!