Quase sempre, as polêmicas que se criam em torno de questões morais ocorrem pela falta de uma compreensão adequada e rigorosa da natureza dos atos humanos e de sua mecânica própria.
Parece-me que o caso mais estridente, que tem confundido até mesmo notáveis autoridades no pensamento moral, é o da mentira.
A proibição absoluta da mentira parece convergir com o senso moral ordinário. Quem quer que tenha escapado de esparrelas utilitaristas e mantido a consciência de que a justiça não se sustenta pelo sabor das circunstâncias ou pelo cálculo das consequências vive com a convicção – ao menos implícita – de que certos atos são maus por princípio – e a mentira parece, claramente, um deles.
Ao mesmo tempo, afirmar isso simplesmente tem gerado uma série de perplexidades. Se minha vida vai muito mal, sou obrigado a dizê-lo ao vizinho que me pergunta no elevador “como vou”? Se a sobremesa servida na casa a que fui convidado tem um gosto horrível, que respondo ao anfitrião que me pergunta a respeito dela? Sou obrigado a dizer a verdade ao nazista que me pergunta se há judeus em meu porão?
A mentira é, certamente, um ato intrinsecamente mau, isto é, um ato cuja maldade está em si mesmo, independente das circunstâncias. Entretanto, é preciso compreender com cuidado o que é uma mentira, o que define uma ação específica como mentira.
A verdade em sentido moral não é a mesma coisa que a verdade em sentido metafísico. Não existe o dever de afirmar todas as coisas que correspondam à realidade – até porque isso é impossível. Tampouco existe um dever de dar informações, ou de responder a perguntas.
A verdade em sentido moral é a parcela de conhecimento que é devida a quem possui uma expectativa legítima a ela. Em termos aristotélicos, a verdade é um bem, que, numa relação humana concreta, é devida a quem possui um título legítimo para reclamá-la.
Em cada situação, é a intenção do interlocutor e as circunstâncias sociais e linguísticas que conformam a relação entre os agentes que nos informam sua expectativa e se tal expectativa é moralmente legítima.
A mentira é um ato intencionalmente dirigido a negar a verdade em sentido moral, isto é, a negar a outrem o que é seu direito legítimo saber. Isso é o que não pode ser feito em circunstância alguma.
Assim, a pessoa que, mesmo estando abarrotada de problemas graves, responde afirmativamente ao vizinho que lhe pergunta no elevador “tudo bem?” não mente. O costume social compartilhado por ambos os interlocutores aponta que a pergunta feita não revela um anseio legítimo por conhecimento a respeito da vida do vizinho, mas mera demonstração de cortesia, que deve ser retribuída com a mesma amável cordialidade.
Da mesma forma, o médico que, diante de um paciente com suspeita de câncer, após realizar exames e constatar que não se trata de um tumor, mas de outro tipo de doença igualmente grave, diz simplesmente ao paciente “você não tem câncer” mente, mesmo que sua afirmação materialmente corresponda à realidade. Ele ocultou do interlocutor o conhecimento acerca de seu estado de saúde, que, consoante a natureza daquela relação, lhe era dado reclamar.
Portanto, cada situação de diálogo possui uma natureza própria, cuja compreensão é fundamental para que se entenda se ali existe uma expectativa moral de verdade. Existem inúmeras relações que escapam à lógica própria da verdade em sentido moral.
O ator de teatro finge ser quem não é. O mágico ilude o público com seus truques. Num jogo de cartas, o blefe é a atitude esperada de cada jogador. Certas conversas entre desconhecidos são regidas pela mera cortesia social. E assim por diante.
Indiscutivelmente, cada uma dessas situações é diferente de um diálogo confiado entre amigos, de uma conversa entre pai e filho, de uma relação entre médico e paciente, de um testemunho público dado sob juramento.
Dessa forma, no tocante à questão da verdade, a tarefa da consciência moral é interpretar retamente, segundo a natureza das circunstâncias, os costumes sociais e o tipo de prática em que se está envolvido, qual é a expectativa legítima da outra parte em cada relação concreta. A atitude correta é dizer sempre aquilo que é justo em cada caso – isso é dizer a verdade como ato moralmente relevante.
Confesso que, embora seja uma formulação tradicional, não acredito no instituto da “restrição mental”, utilizado para justificar os falsilóquios que emitimos em situações em que qualquer um vê que não se pode dar a conhecer aquilo que o interlocutor nos pede. Assim como a Newman e a Rhonheimer, parece-me que a restrição mental é uma saída meramente teórica, que não dá conta da realidade, em suas múltiplas manifestações.
Quando o vizinho me pergunta “tudo bem?”, eu, que estou em péssimo estado, ao responder “tudo bem”, não o faço querendo dizer “está tudo bem, porque, no fundo, o que importa é que sou filho de Deus” e restrinjo mentalmente. Essa é, no mínimo, uma descrição ruim da situação ordinária. O que realmente faço é interpretar a situação de fala conforme o contexto social e compreender, com o senso prático cotidiano, que se trata de um diálogo movido pela mera demonstração de cortesia consoante as convenções, respondendo, assim, de acordo com as exigências da natureza do diálogo.
Quando o nazista me pergunta se há judeus em meu porão, não preciso fazer uma acrobacia mental para inventar uma resposta criativa que seja materialmente verdadeira, como “eu vi tal judeu na padaria semana passada”. Ou justificar minha resposta “não” com uma restrição mental do tipo “não porque, como ensina São Paulo, já não há judeu ou grego”. Eu posso responder “não” porque, naquela circunstância, não há expectativa legítima daquele conhecimento exigido. Ali, o que há é violência e coação – há, na verdade, o oposto de uma relação humana, uma “antirrelação”, na qual nenhuma parte espera qualquer coisa que não seja violência e resistência.
Supor que é lícito, numa circunstância como essa, inventar uma resposta circense como “parece que os judeus não estão longe daqui”, mas ilícito simplesmente responder “não” é transformar a moral numa mera gincana de cumprimento de regras exteriores. É óbvio que, em ambos os casos, a natureza do ato foi a mesma – negou-se ao nazista a informação que ele reclamava de modo ilegítimo, procurando despistá-lo com um engano; não há rigorosamente diferença alguma entre as duas respostas, do ponto de vista da estrutura do ato do agente.
Estabelecer uma diferença entre ambos os casos com base numa “correspondência à verdade” meramente material é construir uma moral de fórmulas, que julga detalhes exteriores e não os atos em sua constituição íntima. Exigir que o benfeitor dos judeus escondidos tenha a habilidade de inventar uma resposta acrobática para não ser moralmente obrigado a revelar o paradeiro dos refugiados não faz sentido algum, do ponto de vista de uma moral solidamente fundada.
Todos nós agimos assim em nosso cotidiano. Naturalmente, fazemo-lo sem teorizar a respeito, mas sabemos ordinariamente distinguir entre a natureza das múltiplas situações sociais e entender o que devemos ou não dizer em cada uma.
Ninguém pensa estar mentindo quando responde “tudo bem” ao vizinho que o cumprimenta no elevador. A resposta pode ser materialmente falsa, mas aquilo não tem relevância moral naquele contexto – porque, naquele contexto, inexiste o anseio legítimo por um conhecimento.
Ninguém tampouco pensa que o pai do famoso filme “A vida é bela” mentiu ao filho ao inventar uma história para poupá-lo dos horrores de um campo de concentração. Naquela relação entre pai e filho, o filho muito pequeno não tinha qualquer capacidade de compreender a realidade do que se passava à sua volta. O ato do pai nos enche de admiração por seu heroísmo e não invoca nenhuma repreensão por seu falsilóquio porque entendemos que o “direito” (isto é, o moralmente devido) da criança antes da idade da razão não está numa comunicação imediata daquela realidade brutal.
Em suma, um ato humano é definido pelo princípio que move a vontade e confere inteligibilidade aos movimentos do agente, não por seu aspecto externo ou por seus resultados. Uma boa teoria da ação é aquela que sabe discernir os atos diante da variedade das circunstâncias, identificando-lhes o espírito e não a aparência.
De forma análoga, um homicídio é um ato voluntariamente dirigido a tirar a vida de alguém. Nem todo ato que resulte na morte do outro é um homicídio. A legítima defesa não é permitida porque é uma “exceção à proibição do homicídio”. A legítima defesa simplesmente não é um homicídio. No ato de legítima defesa, a vontade do agente está dirigida à autodefesa, e a morte do outro é apenas a consequência – não diretamente desejada, mas apenas tolerada – necessária dessa autodefesa.
Igualmente, nem todo falsilóquio material é uma mentira. Nenhum dos casos apresentados é “exceção à proibição da mentira”. A mentira é proibida em si mesma. Não há exceções a esse preceito.
O ator pode dizer que é Hamlet, príncipe da Dinamarca, o jogador pode blefar no truco, o vizinho pode dizer que “vai bem” no elevador, o benfeitor pode ocultar a presença de judeus em seu porão porque nenhum desses atos são mentiras. Podem ser, externamente, falsilóquios (declarações que não correspondem à verdade em sentido factual), mas não são atos voluntariamente dirigidos a negar o conhecimento devido a quem tem uma expectativa legítima – e isso, apenas isso, é mentira.
É tarefa da Filosofia Moral compreender os atos humanos em seu espírito. Do contrário, teremos apenas uma ética resumida a um conjunto de regrinhas, não uma orientação viva da alma humana rumo à perfeição a que se destina.
Prof. Gustavo me emocionei ao ler o seu texto-como sempre.
Além de ser amigo íntimo das palavras, esse texto na minha opinião, materializou a minha contínua impressão: os seus textos sempre tem compromisso com a verdade. Que clareza mental!
Gostaria muito de aprofundar o assunto sobre a moral. Alguma informação complementar?
Quem sabe algum dia desses o senhor seja o meu passageiro.
Cara, sou teu fã! Parabéns, mais uma vez, excelente texto! Além de tudo, muitíssimo útil pra quem preza a verdade e busca viver de forma autêntica. Continue, por favor, nos presenteando com seus textos! Abs!!