Uma das modas da retórica política do momento é condenar da forma mais peremptória possível a “neutralidade” – aquele que a pratica recebe a alcunha de “isentão”, um dos piores xingamentos que se podem lançar a um interlocutor.
Aquele que permanece neutro, na cabeça dos militantes enraivecidos, seria cúmplice de toda a maldade, estaria dando seu assentimento pelo silêncio a toda barbárie cometida “pelos maus”. Para reforçar essa visão, invocam uma frase inventada e atribuída a Dante Alighieri (na verdade, uma psicografia, no melhor estilo das frases motivacionais postas na boca de Einstein), segundo a qual “o pior lugar do inferno está reservado aos que permaneceram neutros em tempos de crise”.
A condenação da neutralidade está fundada numa enorme confusão conceitual, que não discerne adequadamente os distintos significados que a neutralidade pode assumir nos variados âmbitos da práxis humana.
Do ponto de vista moral, não existe neutralidade. Todo ato humano, em concreto, é necessariamente bom ou mau. Estamos nos referindo, insisto, a atos concretos, individuais, determinados no tempo e no espaço.
Em abstrato, muitos atos são moralmente neutros (quase todos, na verdade; poucos são os atos intrinsecamente maus). A maior parte das ações humanas, analisadas em si mesmas, por seu tipo, são neutras e poderão ser boas ou más dependendo das circunstâncias e da finalidade do agente. Comer, beber, assistir a televisão, dirigir um carro, cortar pepino são atos que, em si mesmos, não possuem qualquer bondade ou maldade moral.
Entretanto, cada um desses atos será sempre, necessariamente, bom ou mau quando realizado por um indivíduo, numa circunstância única e específica. O ato de comer será bom quando dirigido ao sustento do corpo e à preservação da saúde e mau quando motivado pela gula. O ato de assistir a televisão será bom quando for um saudável descanso no momento oportuno e mau quando provocado pela preguiça que toma o tempo das obrigações profissionais e familiares.
Todo ato concreto realiza um bem concreto ou deixa de realizá-lo, caso em que se torna mau. O mal não é um ente, mas a simples ausência de bem. Deixar de praticar o bem é agir mal – porque essa já é a própria definição do mal.
Portanto, a neutralidade moral é má. Deixar de escolher o bem a ser realizado no caso concreto é praticar o mal. A neutralidade moral é, na verdade, uma falsa neutralidade. Ela própria é uma escolha, uma escolha pela maldade.
O engano dos ideólogos partidários consiste em transpor esse conceito ético de neutralidade para a arena política.
Ocorre que, no âmbito político, se está sempre diante de circunstâncias variáveis, compostas de complexos de bens e males concretos, cujo amálgama precisa ser analisado prudencialmente por cada consciência, normalmente permitindo uma multiplicidade de caminhos possíveis para a ação.
A fraude do discurso politiqueiro é vender a ilusão de que decisões políticas são sempre escolhas binárias entre “lado A” e “lado B” (sendo A e B partidos, indivíduos, candidatos concretos), na qual um dos dois encarna necessariamente o bem (e, portanto, o outro representa o mal).
Em Política, salvo casos excepcionalíssimos, nunca é assim (aliás, em todos os âmbitos da práxis humana – sempre há um bem concreto a ser realizado em cada circunstância, mas quase nunca há decisões fixas e binárias que encarnam “bem” e “mal”; posso comer ou assistir a televisão, mas também posso não fazer nenhuma das duas coisas, ou fazer ambas ao mesmo tempo).
Por um lado, cada via política concreta que se apresenta – seja um candidato, um partido, uma convocação para a militância ou para a luta armada – sempre mistura bens e males concretos, em diferentes graus, cujos pesos variam conforme as circunstâncias. Não existe um “lado” político que possa ser definido como o bem ou o mal em abstrato, sem ponderações contingentes.
Por outro, as situações políticas a que somos expostos quase sempre admitem mais do que dois tipos de atitudes. Se é possível votar em A ou em B, é também possível não votar ou sair do país. Se é possível aderir a uma luta armada contra um mal que se difunde, é também possível aceitar pacientemente o martírio.
Em vários casos, pode-se praticar uma neutralidade política (no sentido de não se aderir a nenhum dos dois lados que se apresentam numa disputa) sem que isso tenha relação direta com uma neutralidade moral. Em algum caso, a neutralidade política pode ser uma neutralidade moral (e, então, será uma maldade), mas em tantos outros pode não ser.
Por exemplo, o grande escritor francês Georges Bernanos (1888-1948), durante a Guerra Civil Espanhola, sendo um católico monarquista, aderiu inicialmente ao bando franquista contra a barbárie anticlerical dos republicanos. Entretanto, depois de testemunhar, em Maiorca, atos horrendos cometidos pelo exército nacionalista, abjurou seu apoio ao franquismo e escreveu um livro denunciando o que vira, intitulado “Os grandes cemitérios sob a lua”.
Na mente tacanha de muitos, Bernanos teria se tornado um “isentão”. Recusando-se a assumir um lado na guerra civil, estaria implicitamente consentindo com a maldade dos socialistas (ou dos nacionalistas, acusariam os de esquerda).
Na verdade, Bernanos realizou o bem que sua consciência lhe impunha. Diante das atrocidades cometidas pelo governo republicano, dirigiu-se à Espanha com o fito de combatê-las, alinhando-se ao bando nacionalista. Ao constatar que semelhantes atrocidades eram cometidas por aqueles que empunhavam as bandeiras da tradição política e do cristianismo, recusou-se a tomar parte no conflito, denunciando violentamente os horrores do franquismo.
Bernanos assumiu a neutralidade porque esse era o bem concreto que vislumbrou naquelas circunstâncias. Não podia aderir ao socialismo radical, mas tampouco podia consentir com a repressão fascista. Em sua mente, praticaria o mal se apoiasse qualquer um dos dois lados, enxergando o verdadeiro bem moral na ausência de partido.
Talvez, outro cidadão espanhol, diante das mesmas circunstâncias, ponderasse diversamente os bens e males em jogo, talvez dispondo de informações diferentes e contando com experiências muito particulares, e decidisse que o bem concreto estava em se juntar a um lado ou a outro. Tampouco pode ser condenado por isso. A ação política é assim: sempre limitada por informações parciais, experiências pessoais, bens e males que afetam de modos distintos e em graus distintos (mais ou menos diretamente) cada pessoa e cada família. A decisão política é sempre prudencial, sempre variável e sempre sujeita à diversidade de opiniões.
Em suma, em inúmeras situações políticas, podemos ter motivos sérios que nos levem a recusar os males presentes tanto num “lado” quanto no outro. E, se é isso o que vemos, com reta consciência, devemos adotar a neutralidade política, que nesse caso não será neutralidade moral, mas um autêntico bem.
Mais do que isso, se estamos convencidos da maldade de ambas as alternativas que se apresentam em duelo, em tal circunstância, a neutralidade política se impõe como única forma de se fazer o bem. Ou seja, pode ser que a neutralidade política seja o único caminho para se evitar a neutralidade moral.
Pelo contrário, quando um cidadão, inoculado até a medula do vírus da militância irracional, decide conscientemente ignorar a maldade evidente do seu “lado”, com a justificativa de que “se não apoiarmos isso, o outro lado ganha; e o outro lado é o mal maior”, ele sim, em seu esforço escrupuloso por evitar a todo custo a neutralidade política, terá caído na neutralidade moral.
Ao deixar de condenar o mal para não prejudicar seu “lado”, deixa de realizar o bem e, assim, se torna neutro moralmente (o único sentido em que isso importa). Deliciosa ironia: o tolo que dispara acusações de “isentão” por aí luta tanto por não ser “em cima do muro”, que acaba sendo ele próprio o verdadeiro “isentão”, o “isentão” no único sentido importante do termo (um “isentão” moral).
Não se deixem enganar pelas mentes binárias. A criatividade humana sempre permite novas saídas diante de circunstâncias políticas, além de aderir a A ou a B. Se há casos em que se alinhar a A ou a B, mesmo diante de certos males, pode ser o bem a ser realizado, há uma idêntica multidão de ocasiões em que se recusar a assumir um lado será esse bem moral. E pode se dar até mesmo a vez em que a neutralidade política apareça claramente como o único modo de se evitar a neutralidade moral.
Os que gritam com fúria que “o muro é do diabo”, que “a culpa de todos os males é dos isentões que não se posicionam claramente” e outras sandices são os verdadeiros neutros. Parecem quentes por sua paixão política, mas seu calor superficial esconde que são moralmente mornos no espírito – onde verdadeiramente importa, não são nem frios e nem quentes e serão vomitados quanto a política de momento passar e restar a luz estável que clarifica os permanentes juízos dos corações.
Bom dia, Gustavo! Excelente ensaio: cirúrgico, simples e pontual, ao momento atual.