Adaptando uma teoria antropológica de Leonardo Polo (1926-2013), creio que podemos dizer que, ao longo da história do pensamento humano, desenvolveram-se três radicais a respeito do homem, três explicações fundamentais que procuraram sintetizar a essência humana, fincar o sustentáculo para que se possa teorizar a respeito deste maravilhoso e peculiar fenômeno que é a humanidade.
O primeiro deles, surgido na filosofia grega, é o do homem como ser racional. Desde que a humanidade foi capaz de pensar conceitualmente sobre si mesma, a racionalidade apareceu-lhe muito naturalmente como a marca distintiva da natureza humana. O homem se eleva por cima de todo o mundo material por sua capacidade de refletir sobre o incondicionado, de buscar o infinito e o imaterial e, antes de tudo, de posicionar-se no mundo como uma consciência capaz de pensar e de agir a partir de seus próprios motivos e de suas próprias decisões.
Formalizando tal definição do homem, Aristóteles foi capaz de erigir uma antropologia, um pensamento moral e uma teoria das bases da sociedade política que até hoje constituem o ponto de partida de nosso modo de ver e de estudar tais questões humanas fundamentais.
O segundo radical antropológico é o do homem como pessoa. O conceito de pessoa é uma das grandes heranças do cristianismo para o pensamento humano. Surgido em âmbito teológico e formalizado em filosofia na famosa fórmula de Boécio (“substância individual de natureza racional”), tal conceito nos permite ir além das fronteiras do animal racional.
A personalidade aponta que a infinita dignidade do ser humano reside no âmago de sua identidade, numa marca de sua própria existência (“imagem e semelhança de Deus”), não num particular atributo seu – a racionalidade.
No mundo pagão, inexistia a ideia de pessoa. Não se cogitava de que a mera ostentação da condição humana fosse suficiente para conferir uma dignidade ontológica inigualável a alguém, a ser respeitada universalmente. Era a capacidade racional que conferia valor aos homens.
Mesmo nas sociedades antigas mais civilizadas, como Atenas ou Roma, era permitido a um pai abandonar à morte um filho nascido com algum defeito. Crianças e doentes, estando privados da racionalidade, certamente não mereciam o respeito devido aos homens. Tampouco todos aqueles vistos como incapazes da intelectualidade plena – escravos, mulheres, e assim por diante.
A concepção cristã de pessoa recorda que racionalidade não é a causa da humanidade, mas, ao contrário, sua manifestação por excelência. A racionalidade denuncia com a maior vivacidade possível a presença da natureza humana, mas esta não está contida naquela. A simples humanidade confere a cada um dos membros dessa espécie um rosto, uma identidade única e irrepetível, dotada de um mundo próprio. Cada homem é um “alguém”, essencialmente distinto de qualquer “algo”. Essa é a percepção antropológica básica, que subjaz a qualquer teoria sobre a razão intelectiva: reconhecer o outro como um alguém, com nome, com rosto, inconfundível e infungível.
A racionalidade é, certamente, a potência superior da alma humana, mas seu desenvolvimento atual não é o passaporte para a humanidade. Antes, esta reside já na pessoa, que pode ser a de uma criança, de um comatoso, de um analfabeto, de um rico e de um pobre, de um homem e de uma mulher.
A pessoa possui um mundo vasto, de afetos, de fins e de decisões da vontade. A razão coordena o mundo humano, mas não exclui tudo quanto pertence a cada ser humano individual. Na pessoa, a antropologia recapitula todos os elementos materiais do mundo que, em contato com a humanidade, se transformam em cultura: a alimentação, os hábitos cotidianos, a casa, a relação com a natureza física.
Com a Modernidade, surgiu um terceiro radical antropológico, que chamarei simplesmente de indivíduo. O homem moderno voltou-se com um pendor ainda mais violento ao seu mundo interior e, ali, no universo de sua interioridade, descobriu uma capacidade produtiva inabarcável. O homem é essencialmente um produtor, capaz de conferir identidade a tudo que toca, de transformar o mundo à sua imagem. Antes de tudo, é um autoprodutor, um ser cuja definição mais acabada está nas suas mãos – o homem decide o destino de sua vida e, portanto, define sua própria identidade, forjando sua imagem conforme essa atividade criadora que perpassa sua vida interior.
A sede da natureza humana, mais do que numa estática condição de pessoa ou de ser racional, está numa dinâmica atividade existencial, pela qual o homem – e só ele – é chamado à responsabilidade de dar ele próprio o significado de sua identidade, de construir para si seu ser, de, além de todo dado pela natureza, determinar com consciência íntima o que representa sua vida, a que alude seu nome, em suma, quem verdadeiramente é.
O inventor do indivíduo foi, certamente, Immanuel Kant (1724-1804). Foi Kant quem percebeu que o eu é a porta aberta, no homem, para o transcendente. O homem possui, dentro de si, um “fato metafísico” inescapável, que não se demonstra pelo raciocínio, mas que simplesmente se constata pela mera autoconsciência: o eu interior, que se apresenta como um intelecto capaz de refletir sobre o mundo e de agir nele.
O homem é interiormente regido pela lei de sua própria razão. O indivíduo é autônomo, dá a si mesmo a lei que reconhece em seu interior. O indivíduo age por princípios de vida que estabeleceu para si mesmo – e de outra forma não pode agir. A liberdade não é um direito, ou uma meta a se atingir, mas, antes de tudo, é a própria essência da condição humana. O homem só age livremente. Só atravessa a rua se conscientemente decidir fazê-lo. A liberdade é uma condição existencial, antes de ser uma bandeira política ou um lema de campanha.
Kant limitou essa interioridade individual ao âmbito moral. Na filosofia kantiana, mesmo a religião se reduz a agir bem (portanto, cumprindo os mandamentos de Deus). Coube a Søren Kierkegaard (1813-1855) expandir os horizontes da individualidade moderna. Kierkegaard mostrou que a autoconstrução da identidade individual vai bastante além dos termos da ação ética.
Toda a existência espiritual do homem é uma vibrante forja interior, desde o rastejar pela angústia e pelo desespero do contato com um mundo inóspito e abandonado às violências do destino, passando pela consciência da própria insuficiência e da própria maldade, até o reconhecimento de um Salvador, que vem estabelecer uma relação íntima com cada um, uma amizade pessoal, marcada pela irrepetível história desse encontro único entre Criador e criatura (aquela criatura, com suas especialíssimas vida e circunstâncias, necessidades e modos de ouvir). Os homens se fazem demônios e santos, alienam sua humanidade ou se elevam ao sobrenatural por essa voz íntima, que marca sua passagem pessoal pela história, com o selo inconfundível da identidade individual.
O indivíduo como radical antropológico pode ser visto de duas formas. Primeiro, pelo próprio advento peculiar da Modernidade como tempo histórico de rupturas, numa oposição aos dois primeiros radicais. Aqui, surge o individualismo como ideologia moderna. O indivíduo seria uma ilha, totalmente independente dos demais. Cada indivíduo se constituiria num imperador do universo, capaz de fazer de si o que bem entender, de decidir mesmo seu sexo, o bem e o mal para si, sua própria verdade.
Nessa visão, o indivíduo representa uma libertação da natureza humana, cujas descrições não são mais do que grilhões a restringir a autonomia de cada um. Todo dado intrínseco se torna um cárcere inaceitável, e nada se pode opor ao homem senão seu próprio desejo infinito de devir. Todo ser é uma construção, uma decisão autônoma de cada ser individual, cuja essência é o simples produto de seu querer imediato.
Entretanto, o indivíduo moderno não precisa desaguar no individualismo. É possível enxergá-lo como uma complementação aos radicais anteriores. Assim como a personalidade não anula a racionalidade, a individualidade pode ser compreendida como um desenvolvimento de certo aspecto da personalidade.
Não é que a contribuição do indivíduo não pudesse ser já antecipada nas definições da filosofia grega e do pensamento cristão. Certamente, pode. Há, contudo, uma ênfase distinta cuja vivência só pôde se desenvolver no mundo moderno.
No mundo clássico, os aspectos fundantes da identidade de cada homem – sua cosmovisão metafísica e religiosa – eram parte de um amplo consenso social em cada comunidade. O cristão medieval era cristão da mesma forma que nós usamos roupas. Não foi uma decisão tomada intimamente em algum momento de sua vida, mas algo que lhe veio naturalmente do meio social. Isso não significa que escapasse à reflexão racional daqueles homens. Assim como nós, mesmo que nunca tenhamos tomado a decisão íntima de usar roupas, somos capazes de racionalmente compreender por que o fazemos, certamente o europeu do Medievo era capaz de entender racionalmente por que era cristão. Tratava-se, ainda assim, de uma condição de nascença, muito mais do que de um caminho assumido.
O mundo moderno, com sua dissolução da unidade orgânica das comunidades clássicas e seu pluralismo cultural e religioso, rompeu essa ordem vital. Hoje, os aspectos mais centrais da identidade íntima de um homem já não lhe vêm dados, mas precisam ser assumidos por uma consciência que busca a verdade ativamente.
Essa circunstância nos permite desenvolver um aspecto fundamental da natureza humana, tão profundamente enraizado em nós quanto às vezes oculto pelas formulações da filosofia clássica. Se a natureza humana possui contornos, bens e uma perfeição a que é vocacionada que podem ser definidos por uma boa teoria, faz parte, por outro lado, de sua dinâmica tão específica que ela só possa se mover rumo aos bens, naufragar em meio aos males, atingir a perfeição a que tende por uma decisão personalíssima – decisão que cada um precisa tomar a cada dia, que não pode ser transferida a ninguém, que vem do interior, da plena liberdade (auto)criadora.
Mais do que isso, o modo como cada um chegará ao bem e à plenitude do ser pessoal é único e irrepetível. Os fins da nossa vida são percebidos pela inteligência, mas chegaremos até eles sempre por uma história muito concreta, muito pessoal, que não será igual à de ninguém mais, carregando um caráter próprio, uma biografia própria, um caminho próprio, uma ordem própria. Não há caminho – lembra a todos nós, caminhantes, Antonio Machado – faz-se o caminho ao andar. A natureza humana é racional e espiritual, mas o homem é sempre um ser histórico, material, um espírito encarnado, que se concretiza (produz-se) em cada circunstância que jamais se repete, num tempo que se esvai e que, para cada um, é distinto.
A beleza da condição humana está nesse formidável paradoxo. Somos espírito e carne. Buscamos o espiritual, que podemos formular objetivamente, como o dado de uma ordem superior à da matéria. Entretanto, só podemos encontrá-lo num caminho de pedra e de barro, percorrido com pés de carne e de osso. Cabe a nós – e só a nós – fazer esse caminho conforme vamos vivendo. É a vida humana, vivida segundo as rédeas da consciência individual, que abre a estrada que nos levará à felicidade, que forja para nós uma felicidade que, conquanto caia sob a definição da filosofia estática, é, concretamente, uma coisa única, só nossa, diferente nos detalhes da de qualquer outro de nossos irmãos. E nossa alma, uma vez pronta e acabada ao fim de nossa peregrinação, será também o resultado de ações muito nossas, só nossas, de uma biografia feita passo a passo, na forja interior da liberdade. Somos, afinal, uma obra própria, sem deixar de sermos pessoas humanas, à imagem e semelhança de Deus.
Cabe a toda boa reflexão antropológica, em nossos tempos, incorporar essa dimensão da liberdade individual ao patrimônio da tradição filosófica, sem negar as contradições do individualismo ideológico, mas também sem deixar de ouvir o justo clamor do homem moderno.
Muito bom, parabéns!
Primoroso.