"Gran Torino": ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos
Cinema #11
“Gran Torino”, de Clint Eastwood (2008).
É difícil escolher um modo de introduzir brevemente o cinema de Clint Eastwood, o herdeiro solitário de uma antiga geração de magníficos contadores de histórias, que atravessou mais de cinco décadas e, continua, hoje nonagenário, nos lembrando o que o cinema foi um dia.
Neste momento, direi que é um diretor que filmou sempre a si mesmo e se mostrou tal como é, em suas diversas facetas e contradições, ao mesmo tempo em que, com uma bravura que só pertence aos homens de verdade, confrontou seu próprio personagem com as críticas que lhe cabem. Assumiu-se como quem é, mas fez pender sobre si o juízo implacável da consciência moral.
Em cada um de seus filmes, Eastwood continua sendo o andarilho sem nome da trilogia de Sergio Leone, nas distintas fases da vida. Ao passo que afirma a identidade que tão celebremente construiu, abre espaço para ser vencido e convencido por um mundo maior do que ele. É um nacionalista que ama os heroicos valores da América tradicional, mas que ousa questioná-los e mantê-los sob constante crise e revisão.
Em “Gran Torino”, uma de suas obras-primas, Eastwood é Walter Kowalski, um veterano da Guerra da Coreia, senhor de idade avançada, amargo e de trato difícil, de modos rústicos e violentos, um tanto racista em seu desprezo pelos vizinhos asiáticos, negros e latinos.
O filme se inicia com a viuvez de Walter. A perda da esposa, seu genuíno amor, o torna ainda mais ranzinza e isolado. Ele não tem boas relações com os filhos e netos, que considera pessoas fúteis e superficiais. O bairro onde vive se tornou uma colônia de imigrantes, e entre seus vizinhos predominam famílias orientais da etnia Hmong – os quais ele trata como invasores de sua paz. O pároco da região, um jovem e ingênuo Pe. Janovich, tenta se aproximar dele, afirmando que prometera à sua falecida esposa que cuidaria dele e o levaria ao confessionário, e é sempre rechaçado com desdém e zombaria.
Walter, embrutecido pelas feridas de seu passado na guerra, é um homem que só conhece a lógica da violência. O mundo lhe é hostil, e seu modo de vencer o mundo é fazendo-se mais forte. A lei de sua vida é a da força bruta. Quando as gangues iniciam seu reino de terror no bairro e ameaçam a família asiática da casa ao lado, ele afugenta a todos com sua arma.
Entretanto, é justamente daquele clã de imigrantes Hmong que se abrirá para ele, do modo mais improvável, a porta para um novo mundo: o amor e a amizade. Primeiro, os orientais fazem fila em sua casa para lhe trazer presentes em agradecimento por tê-los salvado das gangues.
Depois, os marginais Hmong, buscando recrutar Thao, o garoto da casa ao lado, o fazem tentar roubar o carro de Walter (o “Gran Torino” que dá nome ao filme, seu bem mais estimado). O velho o pega no ato e o expulsa sob a mira da espingarda. Vindo à luz o fato, a família obriga Thao a reparar seu ato, oferecendo-se para trabalhar uma semana a serviço de Walter.
Por fim, o veterano vê Sue, irmã de Thao, sendo atacada pela gangue de negros e os espanta apontando-lhes a arma. Essa série de desencontros e gestos desajeitados vai dando ocasião a um afeto dos vizinhos por aquela figura solitária, um tanto medonha, mas também miserável a seu modo.
É aniversário de Walter. Seu filho e a esposa vão vê-lo, num clima de notável distância e constrangimento. Após uma entrega de presentes, o filho lhe abre um folder que propagandeia um lar para idosos, propondo-lhe “uma vida mais tranquila”, fora “daquele bairro que se tornara perigoso”. Um irado Walter expulsa imediatamente todos de sua casa.
Enquanto se senta tranquilo na varanda, com uma cerveja à mão, Sue se aproxima de sua casa e o convida a um almoço com sua família. Surpreendido, Walter acaba aceitando. Lá dentro, a hospitalidade dos Hmong começa, por fim, a conquistar aquele coração endurecido. Walter come com todos e conversa. Aconselha Thao e se propõe a ajudá-lo.
Subindo um instante ao banheiro, Walter cai em si do que está acontecendo. Aquela era a festa de aniversário que não teria de outro modo. Olhando-se no espelho, diz “Cristo, tenho mais em comum com um bando de asiáticos do que com minha própria família”. Aqueles orientais souberam fazer o que os próprios filhos de Walter não foram capazes: amá-lo assim como ele era, mostrar-lhe essa lógica desconhecida do afeto desinteressado, que responde a uma provocação com uma carícia. Os filhos e netos desistiram do velho, ao constatar seu temperamento intragável, mas houve quem lhe estendesse a mão e soubesse enxergar a bondade que ainda habitava o fundo de sua alma.
Surge diante de nossos olhos a comovente amizade entre Walter e os vizinhos, um dos melhores relatos de compartilhamento da vida entre pessoas inteiramente diferentes que o cinema recente nos reservou. O velho Kowalski ajuda Thao a conseguir um trabalho. Encontra-lhe um serviço de ajudante de pedreiro e lhe compra umas ferramentas. Mais tarde, num gesto definitivo, empresta-lhe o Gran Torino para sair com uma menina.
Contudo, aquele meio ainda vive mergulhado nas sombras da violência. A gangue Hmong arma uma emboscada para Thao enquanto ele volta do trabalho, o agride e lhe quebra algumas ferramentas. Furioso, Walter vai até a casa dos delinquentes e os ameaça com a arma. É o jeito de resolver as coisas a que está acostumado – e ele crê com isso ter garantido a proteção de seus amigos.
Ele não poderia estar mais enganado. Em retaliação, certa noite, a gangue sequestra Sue e a violenta. A imagem da garota ensanguentada fere o mais profundo do coração de Walter. Foram suas ações que provocaram aquela ignomínia. Violência sempre gera mais violência.
Na cena mais tensa do filme, logo após a tragédia, Walter se senta com o Pe. Janovich. Os dois tomam uma cerveja, em silêncio. Não há palavras a cortar o horror que paira no ar. O ingênuo sacerdote, tão devotado aos apelos de paz a todo o custo, parece ter se defrontado pela primeira vez com o terror de um mundo em que a maldade engole facilmente os discursos fáceis. Temos a impressão de que a violência é inescapável e de que há âmbitos da vida em que o amor tem que dar lugar. Parece que nos preparamos para uma guerra.
Toda a brilhante sequência final é constituída de modo a nos levar a crer que eclodirá um último conflito. De certo modo, talvez torçamos por isso. Queremos ver a vitória de nossos protagonistas. Queremos que Walter seja um campeão à altura daquela pobre família.
Walter combina com Thao que tudo se resolverá naquela noite. Dali em diante, simplesmente o observamos preencher seu dia. Ele vai à igreja e diz ao Pe. Janovich que quer se confessar. Sua confissão é rápida e trata apenas de alguns fatos de sua vida. Todos sabemos que ele não tocou as feridas mais profundas de sua alma. Desconfiado e angustiado, o sacerdote lhe pergunta que planos tem e se ele pretende retribuir o ocorrido a Sue. O velho sai sem responder.
Em seguida, compra um terno para si e vai à barbearia, pedindo um trato integral no cabelo e na barba.
À tarde, volta para casa e encontra Thao. Quando o menino pensa que sairão para confrontar a gangue, Walter o surpreende e o tranca no porão. Enquanto Thao urra em protesto, Walter lhe relata os horrores que viveu na Guerra da Coreia. Conta-lhe o quanto destruiu sua alma matar um homem desarmado. Olhando nos olhos do amigo, afirma-lhe que ele já está estragado pelo seu passado, que não é preciso que outro jovem suje suas mãos como ele um dia sujou.
Ali, olhando para o porão de sua casa, Walter enfim confessou o que não conseguiu contar ao sacerdote. Pela primeira vez, abriu sua alma num rasgão de ponta a ponta. Mostrou-se, por baixo da carapaça de homem bruto, um pobre dilacerado pelas maldades de um passado remoto.
Walter se encaminha à casa da gangue. Lá, grita, desafiando a todos. Todas as janelas se enchem de jovens bandidos empunhando pesadas armas. Recitando com os lábios uma Ave-Maria, leva a mão ao bolso. Imediatamente, uma rajada de balas o atinge. Walter cai de braços abertos, morto. Em sua mão, um isqueiro. Não levava uma única pistola consigo.
Eis o desfecho que ninguém previa. Somos brutalmente surpreendidos pela caridade suprema. Eis o que Walter guardava em seu coração. Não era a vingança que pretendíamos, mas um sacrifício de amor, o maior deles.
Volta à nossa mente a construção das cenas anteriores. Vemos agora como essa última virada vinha sendo preparada em nosso subconsciente, sem que nos déssemos conta disso. Walter foi à igreja, ao alfaiate e à barbearia. Preparou sua alma e seu corpo para a derradeira viagem.
O último ato de Walter supriu com sobras o que faltou à sua confissão. Foi a contrição perfeita, como talvez poucas vezes retratada no cinema. O amor transbordante limpou-lhe a alma, sem deixar traços de quaisquer faltas que carregasse. Walter redimiu tudo porque amou com o maior amor existente.
Ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. A cena de Walter morto, de braços estendidos no chão, filmada de cima, é uma evidente imagem cristológica. Walter entregou-se de cabeça ao amor. Reverteu completamente a lógica de sua vida, vivida até então no ritmo da violência. Entregou-se desarmado, indefeso, puro, aos seus malfeitos e, assim, retirou-lhes a força.
Walter já havia aprendido a amar, ao longo do filme. Porém, ainda tentava cuidar de seus amigos com a força bruta. Demorou a entender que a verdadeira amizade conduz a uma nova vida, à total renúncia à lógica da violência. A violência sempre se multiplica com rapidez. Quem fere acaba ferido na mesma moeda.
O amor destrói a maldade entregando-se a ela de bom grado. O amor transforma a ferida e a morte em seu ato mais genuíno de sacrifício. O amor faz da própria morte seu triunfo decisivo. Esse é o amor que impede a violência porque a torna ridícula.
O assassinato de Walter foi testemunhado por muitos, e a polícia conseguiu, finalmente, meios de prender definitivamente os membros da gangue. Enfim, instalou-se a paz naquele bairro. Ele deu a vida para salvar os amigos. Conquistou tudo o que queria porque muito amou, amou até o fim. Bebeu o cálice até a última gota.
Belo filme, belo texto!
Belíssimo texto! 👏👏👏👏🤗