De todos os temas e dramas humanos que já permearam a literatura universal, provavelmente nenhum é mais visceral do que a redenção dos pequeninos. O drama de redenção é, de certa forma, a essência narrativa da humanidade – toda a literatura, no fundo, se encontra no arco entre tragédia e milagre, entre cruz e ressurreição. O estado humano na terra não é senão uma grande ferida, um longo suspiro num vale de lágrimas, iluminado por uma aparentemente paradoxal sede do infinito, capaz de contemplar o bem e a beleza em meio ao lodaçal das desgraças.
E é justamente nos miseráveis e marginalizados que o arquétipo da redenção humana encontra sua mais palpável realização. Nos pequeninos, nos esquecidos da sociedade, se encontram na realidade da carne a sujeira do pecado e a dor da dureza de uma vida de culpa e das humilhações da pequenez. Eles são um espelho da humanidade – neles, a imundície moral e a imundície material fazem núpcias. Neles, a humanidade está exposta sem perfumes, sem roupas de grife, sem aparências de nobreza.
É por isso que o romance “Os miseráveis” está definitivamente plasmado no imaginário humano, conquanto seja uma obra recheada de hipérboles bobas e sentimentalismos ultrarromânticos. Victor Hugo, mesmo em sua breguice de romântico francês, enlatou essa realidade humana tão radical, esse desejo profundo por redenção.
Pelo mesmo motivo, a famosa série de filmes “O poderoso chefão” nos fala muito mais à alma do que o que se esperaria de uma ordinária história de gângsteres. A tragédia de Michael Corleone é um comovente drama de um homem que nasceu marcado pelo destino de viver sempre à margem, embalado pelo crime e alimentado pelo sangue. Empurrado para a sina determinada pelos pais (primeiro, a de não envolver com os negócios da família; depois, a de herdá-los), Corleone buscará uma redenção perdida no fundo de sua alma, nos últimas dias de sua vida.
Entretanto, creio que a obra literária que tratou o tema com mais profundidade e beleza foi a magnífica obra-prima “Crime e castigo”, de Dostoiévski. “Crime e castigo” foi, provavelmente, o livro que mais me marcou pessoalmente. Desde que o li, tornou-se uma obsessão para mim, uma resposta inevitável à pergunta pelo “meu romance favorito” – sem que eu deixe de reconhecer, objetivamente, a maior grandiosidade de outros clássicos eternos, como o próprio “Os irmãos Karamázov”, do mesmo Dostoiévski. Vejo “pedaços” de “Crime e castigo” sempre que me deparo com uma história de redenção narrada com beleza e apreço pelas formas. “Crime e castigo” é uma obra completa; humanamente, não há o que acrescentar.
A redenção de Raskólnikov é o mais íntimo passeio pela alma de um pobre afundado em seus crimes, ao mesmo tempo em que imerso num mundo em que só vivem os pequeninos. Neste romance, não há grandeza humana – estamos na sarjeta da existência, e lá há de brilhar a luz da salvação.
Raskólnikov é um estudante pobre, cuja falta de recursos o obrigou a deixar a universidade. Sua mãe e sua irmã nada têm e vivem num vilarejo afastado. Ele vive à míngua, vagando pelas quebradas da cidade.
Sua mente atormentada elabora uma teoria um tanto nietzschiana. Há homens especiais, cuja elevada capacidade intelectual os põe acima das regras morais tradicionais, mecanismos de controle necessários às massas ignaras. Esses homens podem viver segundo seu próprio arbítrio, subjugando os demais por sua superioridade humana.
Para testar sua teoria, Raskólnikov mata uma velha usurária e lhe rouba uma boa quantia em dinheiro. No mesmo ato, mata também sua pobre irmã, que chega inesperadamente à cena na hora do crime.
Contudo, a realidade de sua própria humanidade vem à tona para contradizer em sua própria carne sua teorização de ser um “super-homem”. Suas sedutoras especulações (narradas por Dostoiévski com tanta vivacidade, que, no início do romance, vamos assustadoramente simpatizando com ele) são impiedosamente esmagadas por uma consciência silenciosa, que nada diz quando o pensamento tenta abafá-la com teorias de invejável sofística, mas apenas se impõe como um fato cada vez mais difícil de disfarçar.
Imediatamente, Raskólnikov cai enfermo. Sua consciência se revolve com o ato horrendo que cometeu. Já não consegue suportar a visão da sua mãe e da sua irmã (que estão na cidade em visita). Torna-se prisioneiro de sua própria mente, assombrada pelos fantasmas de suas teorias amalucadas e do horror do sangue derramado por suas mãos.
O brutal fascínio desta história está em que a luz para Raskólnikov não vem de um grandioso justiceiro, de um santo, ou de um plano mirabolante de fuga criminosa, mas de Sônia, uma prostituta adolescente, filha de um bêbado vagabundo, que precisa sustentar sua madrasta e seus irmãos pequenos. É numa pobre miserável, afundada na lama até os cabelos, que Raskólnivok verá transparecer sua própria redenção. É uma companheira de pecado e de cruz que lhe dá a mão para caminharem juntos rumo à esperança.
É só de reparar nela, de ouvir falar de sua história, numa conversa com seu pai numa mesa de bar, que o rapaz se encanta com ela. Movido por esse encanto, ajuda sem cobrar a família quando o velho bêbado morre atropelado.
A trama de “Crime e castigo” (como é comum na narrativa de Dostoiévski) se condensa em três cenas centrais – duas conversas, em momentos separados, com Sônia no quarto da moça e a cena final da obra. Três cenas inesquecíveis, que nos aguilhoam a alma e nos tiram o fôlego. Que nos fazem sentir o peso do sofrimento humano, ao mesmo tempo em que contemplamos o remédio do amor.
No primeiro deles, Raskólnikov revela todo o seu fascínio por Sônia. Ante uma jovem assombrada, se ajoelha perante ela e declara que os cavalheiros ricos não valem um fio de cabelo seu. Declara que o que nela reverencia é que ali está a síntese de todo o sofrimento humano. Em Sônia vê reunido todo o infortúnio, toda a desgraça, todo o peso de uma vida em vão.
Com duríssima crueldade, constata que Sônia é uma grande pecadora. Tudo o que tinha em seu berço pobre era sua pura dignidade e a jogou no lixo. Pior, o fez em vão. Com a morte do pai, não haverá futuro possível para sua madrasta e seus irmãos. Serão empurrados para a mesma sarjeta em que ela vive mergulhada. Seu sacrifício nada valeu a ninguém. Maculou sua alma e nada ganhou.
Sabendo de tudo isso, por que ainda quer viver? Por que segue Sônia nessa existência amaldiçoada, arrastando-se pela indigência do comércio sexual? Se nada lhe resta, se não há nada para ela no mundo, o que ainda sustenta Sônia? Essa é a questão que fascina Raskólnikov.
Entre lágrimas, Sônia lhe diz que precisa amparar sua família. Se faltar, quem cuidará deles? Raskólnikov pondera que tampouco resta muita esperança de uma vida digna para eles. E Sônia grita, firme, que Deus cuidará deles.
Raskólnikov se assusta. Quer saber por que Sônia acredita em Deus. Que Deus faz por ela? “Faz tudo!”, exclama Sônia, tomada de ira.
Sônia se mantém de pé porque é inarredável sua esperança em Deus. Mesmo no meio da miséria sem fim, Sônia se sente amparada pela Divina Providência em cada instante. Deus vive a seu lado. Sônia é consciente de tudo o que disse Raskólnikov: em sua consciência pesa sua vida de pecado. Nem por um segundo se escusa alegando as dificuldades que a levaram a isso.
Sofre com sua culpa, mas assume seu sofrimento. Sabe que Deus não vem socorrer os puros que não precisam de salvador, mas é um Deus amigo dos culpados, dos criminosos e dos atormentados. É um Deus que morreu pelos pecadores. Sem a capacidade de enunciar fórmulas teológicas, Sônia conheceu esse paradoxo da salvação, que não é um concurso de talentos, mas uma redenção. Seu pecado, sua culpa, sua dor e seu sofrimento são aquilo que lhe dá a segurança de que Deus não a desampara.
No segundo encontro, é o momento de Sônia reconhecer e reverenciar o sofrimento de Raskólnikov. Aos poucos, o estudante revela a ela – e só a ela – o segredo mais terrível que tortura seu coração: que ele é o assassino das duas senhoras. A uma Sônia petrificada, ele narra sua teoria e as ideias que, em sua cabeça, justificam seu crime.
Raskólnikov segue entorpecido pela maldade. Para ele, matou apenas “um piolho”. Uma velha maliciosa e usurária, que tratava mal a todos e explorava os pobres com seu penhor. Era muito justo que ele, que necessitava do dinheiro (roubado pela velha dos vizinhos necessitados e desesperados) para finalidades muito mais nobres, tomasse o que estava em poder daquela senhora.
Sônia está em desespero com o que ouve, mas não sabe discutir teses filosóficas com argumentos. Apenas lamenta, aos brados, o sofrimento de seu benfeitor. Anuncia-lhe que tem o remédio para seus tormentos. Quer vê-lo curado de tanta dor, de uma dor que enlouquece de tão lancinante.
Diz-lhe que vá até a rua, se prostre, beije a terra que profanou e, em seguida, confesse ao mundo em voz alta que matou e peça perdão. Apenas se aceitar o sofrimento de seu crime e suas consequências, poderá encontrar a redenção. Raskólnikov recusa, insiste que não se permitirá ir para a prisão.
Sônia lhe retruca que não poderá viver. Que a culpa o consumirá. Que não haverá paz no mundo, em nenhum lugar, em nenhum tempo. Será sempre perseguido por seu coração, e o tormento será cada dia pior. Promete-lhe que, se se entregar, o visitará na prisão, que cuidará dele e que subirá com ele o calvário da penitência. Quando Raskólnikov se prepara para sair, oferece-lhe sua cruz, para levá-la ao pescoço. A Cruz tornará mais suave sua cruz.
Porém, Raskólnikov está esgotado. Sônia tinha razão: já não consegue viver. Seu corpo lhe recorda seu crime a cada instante. Sua família, seus amigos, seu bairro, tudo lhe parece uma interminável acusação. É melhor entregar-se.
Aqui, contudo, o rapaz ainda não encontrou a salvação. Numa conversa também de uma crueza dolorosíssima, desta vez com sua irmã Dúnia, diz-lhe que não lamenta seu crime, mas sua fraqueza. Não fez mal em matar, mas em não ter conseguido a força do homem de raça especial que julgava ser. Sucumbiu ao moralismo de sua consciência, seu espírito não estava pronto para livrar-se das proibições mesquinhas. Não foi capaz de resistir ao peso da ideia de maldade. Ressentia-se de sua fraqueza, não de ser um assassino.
Nessas terríveis condições, Raskólnikov se entrega à polícia, é julgado e condenado à prisão. Sônia visita-o todos os dias, como prometeu. O milagre ocorre quando a moça adoece e, acamada, fica impedida de ir vê-lo por várias jornadas. Raskólnikov não tem notícias dela e se aflige.
Dias depois, quando a vê, seu coração se abala. Se atira de joelhos aos seus pés e os abraça.
É com essa imagem que Dostoiévski encerra seu romance, anunciando o início da redenção do protagonista. O justo castigo, ainda que aceito de malgrado, preparou sua alma para a purificação. O amor enfim despontou no espírito de Raskólnikov. Ele aprendeu a amar.
O que irrompe ao final não é simplesmente um afeto por Sônia. Isso o estudante tinha desde que a conheceu. Pela primeira vez, no entanto, Raskólnikov esqueceu-se de si. A preocupação pelo bem da amada o consumiu. Ao lançar-se humildemente aos seus pés, ele finalmente aceitou servir. Reconheceu que, longe de ser membro de uma espécie privilegiada, era um pobre coitado, cuja existência dependia daquela que há muito, sem nada receber em troca, insistia em trazer luz à sua vida.
Este é o ponto de inflexão. O orgulhoso e cheio de metafísica Raskólnikov agora chora como uma criança sua vida miserável. E, nesse choro, encontrou a saída para seu abismo. O caminho é longo, mas seu coração agora possui a chave do mistério. A caridade apaga uma multidão de pecados.
Que texto primoroso! De fato és amigo das palavras.
Excelente como sempre