A mais infamante indigência cultural, infelizmente, é doença que se alastrou por toda parte, atingindo democraticamente todos os campos do espectro ideológico. Assusta realmente a incapacidade fundamental de se entenderem noções básicas acerca do funcionamento de qualquer arte humana, intuitivamente disponíveis até mesmo a crianças bem-educadas na cultura cotidiana. A apreciação artística se tornou terreno de delírios ideológicos, de propaganda política, de moralização de hospício, de padrões solipsistas.
Exemplo notável disso é a crítica, que volta e meia regressa à moda, de certos cristãos conservadores à famosa série de livros de “Harry Potter”, incriminada de imoralidade e mesmo de contaminação demoníaca por “conter bruxaria”.
Há inúmeros motivos que demonstram a estultícia dessa crítica, desde o rechaço da boa teologia à crendice de que é possível invocar o demônio por livros ou palavras até a lição básica de filosofia moral de que não há maldade nas coisas. Aqui, no entanto, quero me manter no campo da literatura.
Há uma razão primária que demonstra a ausência de sentido da tese “Harry Potter é diabólico porque traz bruxaria” e que não depende de qualquer incursão demonológica pela natureza das criaturas angélicas ou pelos dados da revelação cristã. Basta saber ler, entender o que significa a literatura como ofício artístico praticado pela humanidade desde os tempos homéricos.
A razão é cristalina: não há bruxaria em “Harry Potter”. Tal sentença pode soar estranha, mas é evidente a qualquer um que cultive o bom hábito da leitura.
Os elementos de uma obra literária devem ser julgados não em si mesmos, mas conforme a lógica interna do mundo ficcional por ela criado. Se aparecer um exército de orcs no meio de “Madame Bovary”, qualquer um certamente abandonará a leitura e jogará o livro fora. Quando o mesmo exército surge nas cenas de guerra de “O Senhor dos Anéis”, isso é considerado perfeitamente natural pelo leitor.
Um exército de orcs não é, em si mesmo, verossímil ou inverossímil, bom ou mal. São as regras próprias da realidade imaginada pela obra literária específica que determinarão se sua presença é coerente com o enredo e, portanto, literariamente admissível.
Não é exagero algum afirmar que uma criança com hábito de leitura já compreende isso. Certamente, ela não formulará o ponto em termos teóricos, como eu fiz agora, mas ela é capaz de exercer esse juízo sobre histórias. Diga a uma criança já com alguma idade, apaixonada por contos mágicos, que você viu um unicórnio no cruzamento da Avenida Rio Branco com a Presidente Vargas, e ela considerará, no máximo, uma piada. Ao mesmo tempo, esse mesmo infante vibra diariamente com unicórnios que surgem nas histórias fantásticas que lê.
A consciência infantil bem-formada já não vê contradição entre essas duas coisas. Um unicórnio num conto de fadas e um unicórnio na sala de reuniões da empresa discutindo planilhas são duas coisas inteiramente distintas.
Da mesma forma, o que, em “Harry Potter”, é chamado de bruxaria não tem nada a ver com o que seria bruxaria no mundo real. O que se condena sob o nome de bruxaria é a tentativa de barganha com forças sobrenaturais de modo a obter efeitos mágicos a partir de objetos ou gestos naturais.
Isso não acontece em nenhuma página de “Harry Potter”. No mundo de J. K. Rowling, a magia é uma potência natural. Algumas pessoas simplesmente nascem com certas habilidades mágicas. Em nenhum momento de toda a saga, algum dos personagens invoca alguma força sobrenatural com vistas a obter vantagens “miraculosas”.
Interpretada conforme as regras daquele mundo ficcional, essa magia não traz nenhum problema moral. Alguém poderia imaginar um mundo em que alguns homens nascem com asas e podem voar. Ou outro no qual possuem visão infravermelha. Em algum dos casos haveria alguma imoralidade que tais homens usassem essas capacidades?
Deus poderia ter criado alguns homens com a capacidade natural de entortar colheres ou de voar em vassouras. Se assim fosse, não haveria qualquer problema que tais homens usassem essa “mágica” inata. Não há qualquer maldade intrínseca nos atos de montar vassouras ou de brandir varinhas. A maldade do que chamamos de bruxaria está na pretensão de subjugar o sobrenatural, atribuindo a ritos humanos poderes reservados a Deus. Não há nada disso na “bruxaria” do mundo de “Harry Potter”.
Bruxaria, no sentido que damos no mundo real, é o que se representa, por exemplo, na eterna tragédia “Medeia”, de Eurípides. Medeia sim é uma feiticeira, descendente do Deus-Sol e herdeira de favores divinos, que usa seus encantos para ajudar Jasão em sua busca pelo tosão de ouro e, mais tarde, tomada pelo ódio da traição do herói, mata seus próprios filhos em vingança. Aqui, a bruxaria é mostrada em seu lugar correto, com todo o horror da maldade que supõe – Medeia é, talvez, a mais terrível vilã da literatura.
Não saber diferenciar “Medeia” de “Harry Potter” é estarrecedora obtusidade em arte humana tão fundamental quanto a leitura. É desconhecer o básico do básico do funcionamento da narrativa ficcional, praticada pelo homem desde a Idade do Bronze.
É o mesmo que não ver diferença entre um exército de orcs em “Madame Bovary” e um exército de orcs em “O Senhor dos Anéis”, que desconhecer a distinção entre o unicórnio que, no reino encantado, ajuda o príncipe a derrotar o dragão e o unicórnio visto pelo paciente da ala psiquiátrica no bar da esquina, servindo uma cachaça a Napoleão.
Não tenho grande preocupação com “Harry Potter” nem creio que tal obra deva ser objeto de análises literárias mais profundas. A saga de Rowling é uma leitura divertida para crianças e adolescentes, nada mais. Tem, é verdade, um inegável mérito, que qualquer um da minha geração será capaz de atestar: o de ter levado um universo de crianças a ler, com fôlego e entusiasmo, livros de muitas centenas de páginas. Para muitos (para mim, inclusive), “Harry Potter” foi a porta de entrada da leitura, o início de um hábito sem o qual a vida intelectual não existiria.
Mesmo assim, não creio que mais tinta deva ser gasta com a obra, nem que cumpra qualquer critério para se aproximar do patamar dos clássicos. A questão aqui não é defender algum valor inestimável da série de “Harry Potter”, mas apenas se contrapor a esse tipo de crítica, que, se levada a sério, conduz a um mundo infenso a toda e qualquer literatura.
É urgente derrotar os inimigos da inteligência, os analfabetos em cultura (muitos dos quais, em triste ironia, dizem levantar a bandeira da “alta cultura”) que pretendem, com a arrogância típica da ignorância, arrastar seguidores para o lamentável estado de indigência intelectual em que se encontram e do qual inadvertidamente se orgulham. A humanidade não sobrevive sem as artes, e as artes não podem estar nas mãos de bárbaros.
O fato de que um bom número de adultos não é capaz de ler uma obra tão simples quanto “Harry Potter” é realmente alarmante – exatamente por isso, porque não são os versos d’“A Divina Comédia” ou os abismos psicológicos de Dostoiévski. O que se pode extrair da saga de Hogwarts salta já da superfície.
Pode-se pensar em “Harry Potter” como uma narrativa sobre o valor da amizade e do companheirismo. Pode-se acompanhar a construção da personalidade de Harry, a partir de seu “duplo” em Lord Voldemort, a quem o destino une, mas de quem a decisão livre separa. Podem-se enxergar na sociedade representada algumas disputas de valores, entre preconceito e tolerância, entre tecnicismo e totalitarismo. Pode-se criticar certa anomia no comportamento dos protagonistas, a implicar que regras são sempre castradoras arbitrariedades.
Há até, concedo, uma ou duas passagens que se prestam a uma profundidade arrebatadora, por uma beleza que transcende o entretenimento infanto-juvenil. A conversa de Dumbledore com Harry ao final de “A pedra filosofal”, em que o diretor lhe explica por que Voldemort não pôde matá-lo – porque o sacrifício de sua mãe, morrendo por ele, no maior ato de amor que pode existir, o protege com a marca desse amor que é mais forte do que a morte – poderia perfeitamente ser um trecho da “Carta aos Hebreus”. É possível pensar longamente sobre o amor, o sacrifício e o milagre com essa passagem.
O que não se pode, em nenhum caso, é transformar a história numa discussão sobre qualquer coisa que possamos chamar de bruxaria no mundo real, com suas consequências éticas e até mesmo demonológicas. Isso é simplesmente enxergar o que não está no texto, é trazer para a obra uma lógica interpretativa inventada na própria cabeça. É, literalmente, “camisa de força literária”, acorrentar a literatura em grilhões imaginários, em critérios subjetivos que só existem nos delírios das mentes desses intérpretes.
Será que sabemos ler? Esse questionamento nunca foi tão importante. É indispensável livrarmo-nos de erros tão primários como esse se quisermos viver uma vida plenamente humana, para a qual é condição essencial lidar com textos e narrativas que transpõem em imagens esta tão desajustada humanidade que carregamos.
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Texto primoroso.
Obrigado.