As mídias sociais amplificaram a difusão da vida intelectual e, como efeito colateral, geraram e multiplicaram a sua própria farsa. Com a substituição da universidade pelo Instagram, uma multidão de incautos pensa estar adquirindo formação por meio da inscrição em grupinhos identitários, reunidos por uma simpatia ideológica prévia, em que se despreza todo conhecimento que não venha de sua própria fonte e se dá crédito exclusivamente à figura em torno da qual o respectivo grupo se forma.
Tal figura é o guru. Usando de uma potência intelectual real (mas, quase sempre, muito inferior à que lhe é atribuída por seus seguidores) e de uma bem treinada lábia na arquitetura de discursos teóricos cativantes, o guru adquire controle mental dos incautos, fazendo-os crer que somente com sua orientação poderão deixar a mediocridade e chegar à verdade.
Embevecido pelo progresso intelectual que julga verificar em si (e, de fato, algum conhecimento novo está adquirindo, pois, como disse, o guru, normalmente, realmente conhece mais do que a média e possui uma inteligência que se destaca), aquele que cai na teia do guru se reduz de bom grado à escravidão do pensamento. Torna-se inteiramente dependente do seu juízo, faz de suas palavras a lei. Aliena-lhe sua identidade e torna todas as coisas e ensinamentos do guru assunto mais íntimo seu. O guru é sua família, sua identidade é imitá-lo, a verdade sai apenas de sua boca, enquanto todos os demais são enganados por mentiras urdidas pelas conspirações globais.
Se sabemos que a submissão a um guru é coisa das mais perigosas, tampouco se pode abrir mão do fato de que o homem precisa de mestres. O indivíduo humano, ser naturalmente comunitário, somente se desenvolve no convívio social, somente aprende verdadeiramente quando ensinado e guiado. Com raríssimas exceções, nenhum intelectual nasce isolado. Uma vida intelectual exige mestres e discípulos – também os que já aprenderam algo suficiente só conseguem sustentar-se intelectualmente se começam a transmitir o que sabem aos demais.
Eis, assim, uma tarefa fundamental, uma arte a ser ensinada desde o berço: encontrar os critérios para discernir o mestre do guru. Deixo aqui algumas pequenas luzes, que encontrei ao longo de minha vida na academia, que talvez possam ser úteis aos que ainda se sentem perdidos na missão de descobrir o ouro nos barris de bijuteria.
O lema do mestre é o de São João Batista: illum oportet crescere me autem minui (importa que ele cresça, e eu diminua). O mestre vive para a glória do discípulo. Sua meta última é que o discípulo o supere. O mestre não faz de si conceito maior do que de um degrau, cuja felicidade está em ser pisado por aqueles que alçarão voos sempre mais altos.
No séquito do guru, a estrela maior será sempre o próprio. A glória do seguidor é servir ao guru – não há nada mais elevado a ser buscado. O guru é o protagonista de tudo, e todos os feitos dos seguidores são remetidos a ele. O seguidor está eternamente ligado ao guru, com cordão umbilical de ferro.
Marca característica da comunidade de discípulos do mestre é a liberdade. Os discípulos aprendem do mestre e o admiram, mas cada um mantém sua personalidade e se desenvolve intelectualmente segundo uma individualidade que se torna tão mais distinta quanto mais ele amadurece. Entre os discípulos do mestre não se percebe qualquer uniformidade, nem de objetos de interesse, nem de abordagem, nem de visão de mundo, nem de ideias próprias, nem muito menos de trejeitos e subjetividades.
Certamente, alguns seguirão o mestre mais de perto, mas a maioria crescerá por caminhos da vida muito próprios, construindo um pensamento pessoal que mesclará elementos aprendidos do mestre com sua própria experiência pessoal e seus próprios estudos de um jeito irrepetível. Nem passa pela cabeça do mestre que seus discípulos devem concordar com ele nisto ou naquilo, estudar especificamente tal ou qual assunto ou segui-lo aqui ou acolá.
Os discípulos são formados para a liberdade. O mestre é sua pista de decolagem, não seu cárcere. O verdadeiro mestre ensina aos seus discípulos o reto uso do espírito crítico, sabendo (e até esperando) que o usarão contra si. Os discípulos não sentem pruridos em discordar do mestre e em lhe fazer críticas. Enxergam, naturalmente, o mestre com admiração, mas o sabem humano, de carne e osso. Não lhe depositam confiança de redentor, mas antes aprendem a raciocinar com o próprio cérebro.
O verdadeiro mestre deseja ouvir o que a lenda põe na boca de Aristóteles a respeito de Platão – amicus Plato, sed magis amica veritas (sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade). O mestre não exige lealdade, nem cobra dívida de gratidão eterna. Ao contrário, ensina lealdade à verdade. O mestre não quer ser confundido com a verdade, nem quer ser a referência primeira de seus discípulos em sua busca por ela. O mestre os conduz a desenvolverem sua investigação por conta própria, a encontrarem autonomamente a verdade por caminhos cada dia mais profundos e mais pessoais.
Aliás, a relação entre Platão e Aristóteles pode ser um modelo ideal para mestre e discípulo. Um discípulo que atingiu a estatura do mestre no primeiro patamar da Filosofia universal (nesse caso, é difícil falar em superação, pois Platão já ocupa o patamar mais elevado, coisa que não ocorre com a maioria dos nossos mestres), construiu um filosofar próprio, com um método em nada semelhante ao do mestre, chegando a conclusões por vezes opostas. O mestre literário e de método dialógico, o discípulo de método rígido e científico. O mestre, como estereotipou Rafael, com os olhos postos no céu, o discípulo atento às coisas da terra. Para a maioria dos comentadores, duas filosofias opostas em seu sentido (não é a minha interpretação, é verdade; alinho-me à minoria que vê uma profunda identidade de sentido em pensamentos que tomaram caminhos diversos, mas não é assunto para este texto).
Platão foi grande como mestre não porque formou “platônicos”, cópias menores de si mesmo que se dedicaram exclusivamente a alguma pequena parte de seu próprio pensamento, mas porque formou Aristóteles.
No séquito do guru, ao contrário, reina a uniformidade. Os seguidores, mesmo inconscientemente, tendem a imitar o mestre em tudo – falam e escrevem no mesmo estilo, repetem os mesmos jargões, interessam-se pelos mesmos temas. As fontes de investigação são sempre o guru e aquilo que for por ele indicado.
Os seguidores são inteiramente dependentes do parecer do guru. Repetem acriticamente suas opiniões e consideram qualquer dissensão, no mínimo, uma imprudente ousadia (afinal de contas, o guru sabe muito mais do que nós, e, se algo seu nos parece errado, provavelmente nossa compreensão é que se equivocou). Não aprendem jamais a cotejar por si próprios o pensamento do guru com outros pontos de vista e enxergar a realidade por ângulos diferentes.
Muito pelo contrário, consideram qualquer divergência um ataque pessoal. Sentem a necessidade de defender o guru a todo custo. Sua comunidade é verdadeiramente uma comunidade identitária (palpável aqui a ironia com os grupos conservadores, que tão radicalmente se opõem ao identitarismo da esquerda contemporânea; o séquito de um guru, quando conservador, é identitarismo de direita). Todos são unidos por uma identidade de pensamento, e quem não pensa da mesma forma é inimigo. A ninguém de fora do séquito se dá crédito, e essas ideias que formam a identidade compartilhada devem ser defendidas com unhas e dentes, com todo o fanatismo de que mentes aprisionadas são capazes.
O mestre pode ser reconhecido pelo desenvolvimento de seus discípulos. Um mestre terá discípulos mais limitados e outros que já lhe chegam mais avançados, mas todos, sem exceção, crescem e se tornam maiores com ele, ainda que dentro de suas limitações. Ao fim de um ciclo ou de um estágio da vida, todos que conhecem o discípulo notarão que galgou muitos andares no desenvolvimento intelectual. Tornou-se ele próprio uma mente que pensa por si, com uma contribuição personalíssima (que não se confunde com a do mestre) a dar à sociedade.
Esse critério pode levar a confusão uma vez que, normalmente, os seguidores do guru também aprendem muitas coisas com ele que nunca saberiam sozinhos. Entretanto, se olharmos de perto, constataremos que apenas conseguem repetir as lições do guru e, quando se aprofundam, é apenas para esmiuçar detalhes de alguma parte específica de sua obra. Jamais passam do estágio de papagaios do guru. Jamais ganham autonomia. Movem-se dentro da cela do pensamento do guru, mas são incapazes de sobreviver ao ar livre.
Alejandro Vigo, meu antigo orientador em Navarra, um autêntico mestre, mantém com seus ex-orientandos um colóquio periódico, em que discutimos textos filosóficos. Naturalmente, nós sempre preferimos que ele escolha o texto e nos guie com suas leituras, mas ele sempre insiste que quer ler os textos que cada de um nós está estudando e ouvir nossa interpretação. Certa vez, disse-nos “Vocês já terminaram o doutorado. Já não são meus discípulos, mas meus amigos. Não podem passar o resto da vida perguntando-me minha interpretação dos textos. Vocês já sabem dar uma interpretação pessoal tão boa ou melhor do que a minha – eu sei porque o constatei em cada um de vocês”.
O mestre não quer seus discípulos a seus pés por toda a vida. O mestre anseia por chamá-los amigos, em vez de discípulos. O mestre não é possessivo, não planeja um caminho para o discípulo, nem se sente traído se este decide fazer outra coisa com a sua vida. O mestre prepara o discípulo para percorrer qualquer caminho, para fazer seu próprio caminho, que só a ele competirá.
A melhor imagem para o mestre continua sendo a de Sócrates – o mestre é o maieuta, uma parteira. A ninguém ocorre que a parteira seja a figura importante de um parto. Todos têm seus olhos voltados à criança que nasce. A parteira é um instrumento da mãe para que tenha em seus braços o filho. A mãe, certamente, agradecerá à parteira pela sua ajuda, mas essa justa gratidão está longe de se comparar ao alegre êxtase de segurar o filho entre as mãos.
No processo de formação intelectual, o que importa é o discípulo e a verdade que deve dar à luz. Eles são a estrela do espetáculo. O mestre apenas ajuda no parto. A glória do discípulo não é aprender com o mestre mais do que a glória da mãe é ser assistida pela parteira. A glória do discípulo é a verdade que nasce nele, com a qual estabelecerá uma relação personalíssima única, de cuja intimidade o mestre não participa, mas observa de longe, satisfeito de ter sido um servo nesse momento tão sublime.
O mestre é uma estrela gasta e fria, cujo brilho se esgotou de tanto emprestá-lo a seus discípulos, que agora reluzem soberanos no céu, cada um atraindo a si uma galáxia diferente. O guru é o sol, a única fonte de luz numa constelação de seguidores-luas, que apenas refletem o seu brilho, sem nunca adquirirem luz própria.
O guru guarda o protagonismo sempre para si. Tudo gira a seu redor. Sob o pretexto da “gratidão”, seus seguidores vivem para sempre de seu conselho. Remetem toda a sua vida e seus méritos a ele. O guru é um suserano intelectual (expressão que causaria asco ao mestre!). Ele não serve ao seguidor, mas o seguidor serve a ele. Beija-lhe sempre a mão, num tragicômico coronelismo do espírito. A verdade não é um filho que sairá das entranhas do seguidor, mas se confunde com os próprios ensinamentos do guru. O guru é a verdade, e ai de quem sugerir que esta pode ser buscada em outras águas.
A comunidade de discípulos do mestre está inserida na sociedade. O mestre, é claro, ensina desde seu ponto de vista, mas faz questão de que seus discípulos conheçam o estado da arte de todas as ciências e de que sejam capazes de interagir e de debater com discípulos de qualquer mestre. O mestre apresenta aos discípulos todos os mananciais de cujas águas podem beber para encontrar a verdade, mesmo aqueles dos quais nunca bebeu ou beberia. Dá-lhes todos os instrumentos para que investiguem e pensem segundo critérios pessoais, que podem acabar distanciando-se muito daqueles que formam o pensamento pessoal do mestre.
O séquito do guru, por sua vez, isola-se do status quo do mundo em que vive. Seus seguidores conhecem apenas o que o guru ensina e as fontes que com ele concordam. Ignoram completamente quais são os argumentos de outras correntes de pensamento, se as ideias do guru possuem qualquer relevância ou penetração na comunidade intelectual universal, quais críticas já foram formuladas a ele e se há resposta satisfatória. A “opção beneditina” é o paraíso do guru. Quais Amish intelectuais, os seguidores vivem como se a régua do mundo fosse o guru, e o choque é muito grande quando um dia descobrem que o mundo é maior do que seu quintal.
É preciso estar alerta. Por toda parte, gurus vendem-se como mestres. Assemelham-se na aparência, pois o lobo veste pele de cordeiro, mas, substancialmente, são água e óleo. Enquanto o mestre nos leva à libertação, o guru é um carcereiro, um carcereiro ardiloso, pois sua prisão é uma maquete do mundo real, dando à vítima a falsa impressão de caminhar livremente. A liberdade é mais difícil, mais árdua e paga menores salários do que a escravidão, mas, por isso mesmo, somente nela está a verdade.
Excelente, Gustavo! Agrada-me o recurso poético das imagens descritas, com as quais você exemplifica ou confirma seus argumentos.
Parabéns, meu amigo!
Belo texto!
Sensacional 🤌🏻