O Livro V d’“A República” é, sem dúvidas, um dos textos mais intrigantes e polêmicos da história da Filosofia. Ele contém a famosa descrição de Platão da cidade ideal e de seu sistema político. A República dos sonhos do grande filósofo ateniense é bastante curiosa e mesmo chocante. Governada pelo rei-filósofo, ela está dividida em mais duas classes, a dos guardiões, classe de homens superiores aos quais compete a defesa da cidade, e o povo em geral, composto pelos mais diversos trabalhadores em seus ofícios.
A comunidade superior dos guardiões é formada por homens e mulheres em plena igualdade, que viverão num regime de comunidade absoluta. Não haverá união matrimonial, mas todos os homens e todas as mulheres pertencerão a todos. Tampouco os filhos serão dos pais que o gerarem, mas serão criados por toda a comunidade. Não haverá propriedade privada, e todos os bens serão compartilhados.
O enigmático significado dessa passagem tem desconcertado os leitores há milênios. Naturalmente, inúmeras interpretações já foram propostas. A mais óbvia e também a menos inteligente é a interpretação literal, que no século XX foi notavelmente vocalizada por Karl Popper, num dos textos mais dolorosamente ignorantes já escritos por um pensador respeitável.
Popper e outros intérpretes ocos acusam Platão de conceber uma terrível distopia, uma ditadura horrenda a suprimir as mais básicas intuições da lei natural, como a família e a propriedade privada. Seria Platão o autor da primeira utopia política, um comunista do mundo antigo, a ser celebrado apenas pelos revolucionários radicais.
É possível ter grande erudição e, ainda assim, uma inteligência cega para sutilezas e inapta para águas mais profundas. É muito claro em toda a filosofia platônica que “A República” não é um livro a ser tomado literalmente, como uma espécie de manual político para qualquer sistema de governo.
Rejeitar a interpretação literal é um passo necessário para qualquer um que busque verdadeira intimidade com o texto filosófico platônico. Não é, porém, o suficiente para livrar-nos do embaraço diante de tão misteriosa passagem. Mesmo entre aqueles que conhecem bem a natureza do diálogo, não se estabeleceu qualquer consenso sobre o significado das lições de Platão acerca da cidade ideal.
Alguns defendem que se trata de uma ironia socrática, uma redução ao absurdo das utopias e sua cega confiança na política. Outros propõem que a cidade platônica é uma analogia da alma humana, trazendo uma explicação da reta interação e ordenação de nossas faculdades em vista do bem, o grande objeto de todo o diálogo.
Creio que algumas dessas leituras possam, em parte, se encaixar, mas minha interpretação favorita vê algo ainda além. Retornando ao tema da natureza da obra, entendo que “A República” não é um livro de Filosofia Política em sentido estrito (ou, talvez, seja uma Filosofia Política no sentido mais primordial e essencial). A teoria política de Platão, com suas teses sobre a organização prática do governo civil das sociedades, se encontra em “O Político” e em “As Leis”, diálogos que não trazem nenhuma referência a ideias tão excêntricas quanto aquelas que antes descrevemos.
“A República” está em outro âmbito. Trata-se, podemos dizer, de uma “metafísica da comunidade”, ou uma “metafísica da sociabilidade humana”. Platão está, aqui, pensando numa ontologia de toda manifestação de vínculo comunitário humano e compreendendo a perfeição dos homens na organização espiritual de sua existência.
Platão é o mais espiritual dos filósofos, um místico da Grécia Antiga. Sua primeira reflexão “política”, muito antes de qualquer prescrição concreta sobre o governo dos cidadãos, é um sonho profético a respeito do significado espiritual da sociabilidade inscrita da natureza humana e dos vínculos que necessariamente marcam a vida da humanidade sobre a terra. A resposta que devemos buscar é aquela que nos diga o que está sendo simbolizado pelas estranhas características da exótica comunidade dos guardiões.
Em vez do gigantesco bacanal e da abolição da paternidade, parece-me que devemos ver nos guardiões a prefiguração das comunidades que, na tradição cristã, chamamos de religiosas. Platão imagina um tipo superior de comunidade, em que os vínculos carnais deem lugar a vínculos puramente espirituais. Comunidades de homens e mulheres celibatários, dedicados exclusivamente aos bens espirituais.
Todos são de todos porque estão unidos em desposório místico. O casamento se mantém como instituição entre o povo, mas os “guardiões” a ele renunciam em nome de uma união especialíssima, que não se consuma na carne, mas exclusivamente no espírito. A plena comunhão de almas substitui a ordinária comunhão familiar.
Da mesma forma, a filiação aqui é uma filiação espiritual. Os filhos não são gerados na carne, mas no espírito, pela vocação transmitida a novos candidatos a essa vida superior. Por isso, são criados por toda a comunidade. O cuidado espiritual dos jovens que se preparam para tal estado de vida é compartilhado entre todos, que a eles participam essa comunhão invisível.
Os vocacionados à vida dos guardiões abandonam os vínculos familiares não porque sejam estes maus – muito pelo contrário – mas porque encontram um tesouro ainda maior, que não pode ser vivido por todos, mas cabe a alguns como um dom particularíssimo de adiantar sobre a terra a vida celeste. O guardião vive sem pai, sem mãe, sem genealogia ou descendência porque foi chamado a estar nas alturas, desocupado dos afazeres terrenos, para ser para todos notícia da sobrenaturalidade da vida, do destino da alma humana num mundo imortal e muito superior. Renunciam aos afetos particulares para compartilhar com todos um amor mais excelso. O guardião é de todos porque morreu para si mesmo e para seus desejos singulares.
Essas comunidades compartilham voluntariamente todas as coisas porque há muito abriram mão dos bens materiais. O povo permanece com a instituição da propriedade privada e administra legitimamente os bens que preenchem sua vida. A comunidade espiritual já não se dedica a eles e, por isso, vive em regime de plena comunhão de todas as coisas.
Também por isso se explica a igualdade plena entre homens e mulheres (ideia tão estranha para a época) na classe dos guardiões. Como sua ocupação é puramente espiritual, é bastante lógico que Sócrates mostre que não há diferença entre os sexos na aptidão para ela e que, simplesmente, cada um a realize conforme as melhores disposições de seu ser individual.
O rei-filósofo não é uma sugestão de que todo governante seja um homem espiritual, dado às ciências da especulação ontológica. É antes uma percepção platônica da necessária subordinação do temporal ao espiritual, de que a administração dos assuntos materiais seja sempre guiada, em última instância, pela bússola da moral e da justiça eterna.
Essa me parece a interpretação que melhor justifica e recapitula os múltiplos enigmas da cidade ideal de Platão. Vista na chave de uma comunidade perfeita, extrapolítica, ela se harmoniza mais inteiramente com toda a estrutura d’“A República” e seu caminho em direção à contemplação do bem transcendente. Parece mais razoável (muito mais do que supor que as belíssimas alegorias sobre a verdade e a justiça são interrompidas pelos delírios de uma devassidão completa, de uma sociedade orgiástica) vislumbrar Platão como um homem muito acima de seu tempo e dos horizontes de compreensão da sociedade ateniense. Platão é mesmo o mais universal dos espíritos, o homem que enxergou mais do que o humanamente possível.
Por um lado, é preciso evitar o charlatanismo, atualmente epidêmico no meio neoconservador, dos “simbolismos” arbitrários atribuídos a qualquer coisa, fora de seu contexto próprio. Ler Platão com óculos evidentemente forjados pela tradição cristã posterior, certamente, assume o risco de cair nisso.
Por outro lado, a incrível coincidência entre Platão e o cristianismo não é uma novidade extravagante, muito pelo contrário. Os Padres da Igreja chegaram a crer com plena convicção que havia algum intercâmbio entre os sábios de Atenas e o patrimônio judaico, dispondo para isso apenas da evidência dos textos platônicos aparentemente tão repletos de sabor escriturístico (tal hipótese já foi há muito descartada pela ciência histórica).
A filosofia de Platão é, certamente, uma filosofia religiosa, ocupada majoritariamente (mais até mesmo do que aquelas de alguns pensadores que efetivamente professavam alguma religião monoteísta) de temas sobrenaturais e escatológicos – e isso é apenas uma descrição objetiva. Sem a aguçada visão mística, não é possível desvendar as alegorias de Platão, apontadas sempre para o céu, como no quadro de Rafael.
Que os diálogos platônicos são alegóricos do início ao fim, é também incontroverso entre os estudiosos. Não pode ser levado a sério quem pretenda ver a cidade sonhada por Platão como uma exposição literal de um governo possível. Seguir Platão em seu próprio compasso é buscar, desde o princípio, a chave para aquilo que se esconde atrás das imagens tão belamente construídas – e aí está a doçura do enredar-se no fantástico corpus platônico.
Se não nos é possível furtar-nos a imaginar a ideia de comunidades religiosas como estamos habituados em nossa cultura cristã, não deixamos também de notar que a ideia de comunidades celibatárias que se dedicam a guardar espiritualmente a sociedade como um todo não é, em absoluto, uma exclusividade do cristianismo (basta conhecer algumas religiões orientais ou assistir a “Star Wars”).
Os textos dos grandes filósofos são sempre mais fascinantes do que aquilo que cabe em nossas interpretações ligeiras e subnutridas de argúcia.
Perfeito!
Muito Obrigado prof. Gustavo.