2022 pode ser considerado o ano do retorno do cinema, após a letargia e os mil obstáculos impostos pela pandemia, que muito prejudicou a safra cinematográfica dos últimos dois anos.
O ano foi repleto de eventos interessantes: novo filme de James Gray, Paul Schrader completando sua trilogia bressoniana, o retorno de Walter Hill depois de alguns anos sem filmar, Abel Ferrara filmando a biografia do Padre Pio.
Pela primeira vez, desde que comecei a fazer minhas listas anuais, completei um top 10 em minha lista de favoritos, que apresento agora, como sempre, em ordem crescente de minha preferência:
10 – “Treze vidas”, de Ron Howard
Filme que narra a história real do resgate de um time infantil de futebol na Tailândia, que, em 2018, ficou preso numa caverna depois de uma inundação. Um exemplo de história muito bem contada, com narrativa envolvente e sem afetações. Howard construiu uma perspectiva muito interessante para contar sua épica aventura. Não há foco nos personagens, nem a construção delicada de heróis, mas a protagonista do filme é a própria operação de resgate. Despido de sentimentalismos, o filme nos mantém em tensão por toda a sua duração, fazendo-nos experimentar longos e perigosos mergulhos que compuseram esta demorada e dificílima missão.
09 – “Luta pela fé”, de Rosalind Ross
O novo projeto de Mel Gibson, com direção de sua namorada, em seu primeiro trabalho como diretora. Trata-se da vida de Stuart Long, um vagabundo que passou errante por várias ocupações (de boxeador amador até ator) e terminou se convertendo e ingressando no seminário.
A história é contada no conhecido estilo hiperbólico dos filmes de Gibson. Por mais que a narrativa de uma conversão vibrante seja entregue com a emocionante paixão de cineastas com fé verdadeira, aqui a repetição de fórmulas se faz um pouco cansativa. Tudo é caricato, tudo é exagerado, os recursos de manipulação de sentimentos se tornam batidos para quem está acostumado com Gibson. A estrutura do filme parece uma cópia mal disfarçada de “Até o último homem”. Inobstante, a história segue sendo um belo conto de fé e redenção em meio à violência.
08 – “Crônica de uma relação passageira”, de Emmanuel Mouret
Mouret é o novo bardo dos amores franceses. Assim como em seu último filme (“Les choses qu’on dit, les choses qu’on fait”, segundo lugar na minha lista de 2020), aqui temos um conto de amor (certamente, mais simples) como pretexto para a vazão de discursos sobre a essência do enamoramento, ideias confusas e conflitantes que cada amante traz em seu coração e em seu modo de vida.
Charlotte, uma mãe solteira, e Simon, um homem casado, se encontram e decidem iniciar aquilo que se anuncia, desde o primeiro momento, como um romance passageiro (e não poderia ser diferente, já que adúltero). Charlotte está acostumada a viver de amores passageiros, enquanto Simon se aflige com sua aventura de traição. Ambos vivem a leveza de momentos pactados sem compromisso, enquanto deixam aflorar seus próprios pensamentos sobre o amor. Eis o paradoxo que vemos instalar-se: o amor desfruta dessa leveza, mas é feito para sobreviver justamente na estabilidade da promessa permanente e do sacrifício.
07 – “Caçadores de recompensas”, de Walter Hill
Hill retorna ao cinema com um belíssimo western, de raro sabor clássico e grande força moral. O caçador de recompensas Max Borlund é contratado por um empresário para encontrar sua esposa, dada como sequestrada. Quando vai descobrindo que as coisas não são como parecem ser, Borlund é chamado a revelar que, por trás de seu ofício de mercenário, há uma inconfundível bússola moral, que o torna, antes de um serviçal deste ou daquele contratante, um capataz de sua consciência.
06 – “O mestre jardineiro”, de Paul Schrader
Schrader encerra com chave de ouro sua trilogia bressoniana (os dois filmes anteriores – “Fé corrompida” e “O contador de cartas” encabeçaram minhas listas em seus respectivos anos). O personagem central, desta vez, é Narvel Roth, um dedicado jardineiro que cuida dos suntuosos jardins de Gracewood Gardens, propriedade da aristocrata Sra. Haverhill.
Como nas obras anteriores, Narvel possui um passado obscuro (que, desta vez, apenas nos é revelado em flashes confusos, como em pesadelos dispersos) e escreve em seu diário as agruras de sua alma fustigada pela culpa. Como também não poderia ser diferente, ele se deparará com o amor como um caminho para a expiação e para a passagem definitiva a uma nova vida, feita de um bem desinteressado e repleto de sacrifícios.
05 – “Armageddon Time”, de James Gray
É sabido que considero Gray o melhor cineasta da geração atual. “Armageddon Time” é o seu pior filme, mas o pior de Gray ainda é melhor do que quase tudo. Um filho de imigrantes judeus, todos os seus filmes narram alguma migração (em seu último – “Ad astra” – uma migração aos confins da galáxia). Aqui, trata-se de uma autobiografia quase literal.
Gray narra episódios de sua infância na Nova York dos anos 1980, na pessoa do garoto Paul Graff. Paul sonha em ser artista, contra a vontade de seus pais, é apaixonado por seu cativante avô Aaron, faz amizade com Johnny, um menino negro de vida complicada. O filme recai, em vários momentos, em sentimentalismos e em didatismos, incomuns na obra de Gray. Ainda assim, a encenação do racismo, das diferenças sociais entre a escola pública e o colégio particular, da injustiça e das ambiguidades de uma família que sofreu a perseguição e o ódio, tudo sob os inocentes olhares de uma criança, guarda uma beleza sincera e sem partidarismos própria deste maravilhoso cineasta.
04 – “Os Banshees de Inisherin”, de Martin McDonagh
Uma comédia de humor negro, que, com uma impressionante trama absurdista, consegue levar-nos ao coração da vida humana e seu sentido. A história se passa numa ilha perdida na costa da Irlanda, onde todos levam uma vida pacata e isolada.
O enredo se precipita por um fato surrealmente irrelevante. Colm decide romper sua amizade de muitos anos com Pádraic, sem nenhum motivo aparente. A justificativa de Colm é que ele possui elevados dons artísticos (compõe e toca o violino) e, para se dedicar a eles, precisa deixar de perder tempo com a conversa fiada de Pádraic.
Pádraic fica completamente transtornado com o abandono do amigo e decide resgatar a amizade a qualquer custo. Colm, por sua vez, está decidido a ir até o absurdo por sua convicção de que sua vida vale por suas grandes obras, não pelo tempo dedicado às outras pessoas.
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine” (I Cor 13,1). Colm compõe como os anjos, mas lhe falta amor, e por essa fresta se desenhará a tragédia.
03 – “A romancista e o seu filme”, de Hong Sang-soo
Hong Sang-soo é famoso por trabalhar incansavelmente, realizando, ao menos, dois filmes por ano, sempre seguindo a mesma fórmula. Seus filmes são singelos recortes do cotidiano, sem um grande significado maior do que enquadrar os momentos e os dramas da vida.
De seus últimos filmes, este possui uma força particular. Trata-se da história de uma escritora, que agora decide realizar um filme. Ela busca uma atriz, interpretada por Kim Min-hee (a estrela de todos os filmes recentes de Hong), e quer apenas filmá-la em sua singeleza, sem grande preocupação com o enredo a ser escrito. É um filme sobre um filme e também uma narrativa sobre o próprio método de filmar de Hong, exposto na tela para seus entusiastas e críticos.
02 – “Os Fabelmans”, de Steven Spielberg
Inventor do blockbuster de puro entretenimento, Spielberg é um dos assassinos do cinema. Seus filmes são todos repletos de obviedades, de breguice, de moralismo barato e manipulador, uma confeitaria enjoativa que estimula o mau gosto.
Entretanto, no fim de carreira, ele enfim foi capaz de conceber uma grande obra. “Os Fabelmans” tem alguns momentos de sentimentalismo, mas é, no todo, uma obra equilibrada e sóbria, arquitetada nos detalhes com a sutileza que sempre faltou ao diretor.
Trata-se de um conto autobiográfico, em que Sam Fabelman é um jovem apaixonado pelo cinema, que vai aprendendo a fazer filmes enquanto cresce. Vemos, primeiro, como a arte irrompe em sua vida pelo maravilhamento da fantasia, ainda na infância. Em seguida, ela se torna a válvula de escape de suas dores, quando a família se rompe pela separação de seus pais. Uma belíssima homenagem à sétima arte e à função do sublime em nossas vidas.
01 – “Padre Pio”, de Abel Ferrara
A cinebiografia de São Pio de Pietrelcina, longa que ganhou os holofotes pela notícia da conversão do ator Shia LaBeouf, que interpreta o frade capuchinho, é o melhor filme do ano.
A obra não é uma hagiografia tradicional. Ferrara não quer filmar a vida do Padre Pio, mas utilizá-la para exorcizar seus próprios demônios, que também são os nossos. A história se divide em duas, e praticamente não há conexão entre os dois núcleos.
O jovem Padre Pio, em seu convento, debate-se com dúvidas de fé, enquanto busca respostas para um mundo assolado pela maldade, diante do aparente silêncio de Deus. Enquanto isso, a cidade de San Giovanni Rotondo vive a crescente escalada da radicalização ideológica no período entreguerras, com o povo se dividindo entre fascistas e socialistas.
O vínculo entre as duas histórias é espiritual. Padre Pio sofre em sua alma toda a maldade do mundo, que vemos estampada na guerra e nos acontecimentos do vilarejo. É este mesmo o sentido da vida do santo capuchinho: assumir, como Cristo, em sua carne os sofrimentos do mundo afogado no pecado, oferecendo-se em expiação por toda a infamante iniquidade.