Se, em 2022, pudemos notar com clareza o retorno do cinema após o hiato da pandemia, 2023 foi o ano em que a indústria cinematográfica decidiu anunciar esse fato aos quatro ventos. A estreia simultânea de “Barbie” e de “Oppenheimer”, dois blockbusters opostos em gênero e em público, foi o evento comercial do ano, a voltar às grandes telas as atenções de todo o planeta.
Esse fatídico dia também permitiu distinguir essencialmente o público. Os de autêntico bom gosto foram assistir a “Barbie”, da promissora Greta Gerwig (que estreou na direção com o ótimo “Lady Bird”). Os pseudointelectuais, por sua vez, optaram pelo cinzento, opaco, cheio de pose e vazio de conteúdo “Oppenheimer” (sim, meus adjetivos descrevem todos os filmes de Christopher Nolan; não há o que fazer já que são todos iguais).
Brincadeiras à parte, “Barbie” também não chegou à minha lista de preferência. É um filme divertido e nada mais. Não tem a importância ideológica que lhe atribuíram tanto seus entusiastas quanto seus detratores (é, de fato, melhor do que “Oppenheimer”, mas qualquer coisa é).
Os meios conservadores também tiveram os seus próprios blockbusters: “Nefarious” e “Som da liberdade”. O primeiro é um absoluto nada cinematográfico: vazio de enredo, atuações forçadas, diálogos óbvios, tom panfletário de pregação apocalíptica de igreja de fundo de quintal. Um filme que não é um filme, mas um discurso argumentativo do início ao fim, sem um pingo de criatividade artística. Os elogios descabidos a essa obra são a prova cabal de que o conservadorismo da “alta cultura” e da “formação do imaginário” não se incomoda com o uso ideológico da arte – incomoda-se apenas que a ideologia não seja a sua.
“Som da liberdade” é um filme razoável. Uma história bem contada, mas que se vende como uma obra-prima apenas por sua “mensagem”. Filmes não são propaganda de cartão de crédito; uma “mensagem”, por mais bem intencionada que seja, não sustenta uma obra de arte.
Afastados os bezerros de ouro, vamos aos filmes realmente bons do ano. Mais uma vez, completei um top 10, que, como sempre, vem apresentado em ordem crescente:
10 – “A última sessão de Freud”, de Matthew Brown
O filme imagina um encontro fictício entre Sigmund Freud, fundador da psicanálise, e C. S. Lewis, famoso escritor cristão. A soma disso com o fato de Freud ser interpretado pelo divino Anthony Hopkins é suficiente para o filme constar desta lista. Diálogos cheios de vida, uma atmosfera delicadamente construída, um escrutínio apaixonante dos temas de Deus, da espiritualidade e da decadência do mundo moderno, dois pontos de vista opostos que em tudo se respeitam e, mais do que tudo, veem um no outro as chagas de sua alma e buscam remediá-la segundo o que sabem. Belo e entusiasmante.
09 – “Wildcat”, de Ethan Hawke
Ethan Hawke se aventura na direção para trazer às telas a biografia da grande escritora norte-americana Flannery O’Connor. O filme parece mergulhar no universo de O’Connor, fazendo brilhar vividamente sua paixão pelas letras, numa atmosfera envolta no fantástico e no grotesco, na estranheza que sempre foi para ela caminho para o sobrenatural.
08 – “O menino e a garça”, de Hayao Miyazaki
O astro do Studio Ghibli, aclamado como o maior animador da história do cinema, lança o filme que coroa e resume sua carreira. Trata-se de um conto autobiográfico, em que o menino Mahito perdeu a mãe durante a Segunda Guerra Mundial. Seu pai e sua nova madrasta mudaram-se com ele para o campo.
Naquela região distante, Mahito é visitado por uma estranha garça, que o leva até um casarão abandonado. Ali, encontra-se um portal para um mundo paralelo. O enredo é surreal e não totalmente linear, além de conter várias referências às obras anteriores de Miyazaki.
Trata-se de um belíssimo retrato da irrupção da arte na vida de uma criança e de como o mundo da imaginação, longe de ser pura diversão infantil, é constituído dos mesmos paradoxos e das mesmas cruzes da realidade.
07 – “In Water”, de Hong Sang-soo
O incansável cineasta coreano que faz dois filmes por ano aparece pelo segundo ano consecutivo na minha lista de favoritos. Desta vez, Hong traz mais uma inovação técnica: o filme é filmado de modo levemente desfocado. A ideia combina com o estilo e com a intenção de Hong: trazer-nos repetidas vezes as mesmas imagens, as mesmas cenas, retiradas do cotidiano, mas com pequenas diferenças de perspectiva (não são assim as paisagens da nossa vida – sempre as mesmas, mas cada dia com algum detalhe distinto, segundo o modo como olhamos?).
O filme segue uma equipe de filmagem que pretende gravar um longa-metragem numa ilha. O diretor busca ideias conversando com os locais e observando as cenas de cada dia e vai descobrindo aquilo que Hong quer nos revelar: a vida é simplesmente composta de singelos recortes da realidade, que não nos dizem literalmente mais do que sua própria banalidade – e isso é belo.
06 – “Broker”, de Hirokazu Koreeda
Depois da obra-prima “Assunto de família”, Koreeda nos brinda com mais um conto enternecedor de famílias que não são famílias. Aqui, vemos uma dupla que toca um negócio ilegal: eles roubam bebês que são abandonados na porta da igreja e os vendem num mercado negro de adoção. Um dia, uma jovem mãe, arrependida de ter deixado seu filho, acaba descobrindo a gangue e decide juntar-se a eles na missão de encontrar pais para o seu bebê. Viajando juntos, esse estranho grupo de contraventores acaba servindo de verdadeira família ao recém-nascido e uns aos outros, descobrindo a realidade de um amor que parecia ausente no coração de cada um.
05 – “Anatomia de uma queda”, de Justine Trier
Vencedor da Palma de Ouro de Cannes, este filme entra na galeria dos dramas de tribunal a não serem jamais esquecidos. Sandra vive com seu marido Samuel em completo isolamento, no meio das montanhas francesas. O casal tem um filho – Daniel, que é cego.
Um dia, Samuel aparece morto na frente de casa, debaixo da janela de sua oficina. Seu corpo é encontrado por Daniel. Somos deixados à tarefa de descobrir se Samuel caiu acidentalmente, se se atirou ou se foi empurrado por Sandra. Enquanto a mulher é levada a julgamento, temos que confrontar-nos com a dura realidade: somos todos como Daniel, cegos tateando no escuro, julgando a verdade com base em evidências obscuras e fantasmagóricas.
04 – “Folhas de outono”, de Aki Kaurismäki
Uma história igual a milhões de outras. Um homem e uma mulher se apaixonam. Só isso, como tantas vezes já aconteceu. Encontram-se casualmente, voltam a encontrar-se, separam-se, unem-se. Qualquer história pode gerar uma grande obra de arte, se o cineasta souber filmá-la.
Kaurismäki dá uma aula de escolhas artísticas. Os enquadramentos e o silêncio transmitem a solidão dos personagens. A cuidadosa mise-en-scène acalenta o romance. Uma história bem contada.
03 – “Ferrari”, de Michael Mann
Michal Mann, cineasta consagrado nos filmes de ação, volta à ativa com uma biografia de Enzo Ferrari, o polêmico fundador da poderosa escuderia que leva seu nome. A película carrega a receita distintiva de Mann: rapidez na ação e exposição crua das falhas e dilemas de grandes homens.
O mundo de “Ferrari” é líquido e se move na angustiante velocidade dos carros de corrida. O filme corta diretamente na carne: a indiferença ante a morte onipresente, os insolúveis dramas familiares que retalham a alma dos personagens em amor, ódio, ressentimento. A cada instante, a dor de um mundo que gira sem nos dar tempo a tomar fôlego.
02 – “Fechar os olhos”, de Víctor Erice
Apenas o quarto longa-metragem da carreira deste misterioso cineasta espanhol, que não estreava uma película desde 1992. Erice nos coloca num filme dentro de um filme, um filme que nos envolve e que gostaríamos de assistir, mas nossa expectativa se quebra quando descobrimos que se trata de uma cena de um filme inacabado, o último no qual o ator Julio Arenas trabalhou, antes de desaparecer misteriosamente.
Agora, acompanhamos Miguel Garay, diretor daquele filme e melhor amigo de Julio, vinte anos depois, enfrentando o mistério do sumiço de seu companheiro. Miguel mergulha nas agruras e nas contradições de seu passado, enquanto se constrói um final que confunde a arte e a realidade: a última cena do filme perdido e o elo faltante na história de Julio encontram-se juntos, ali onde se encontram o coração e a imaginação.
01 – “Batem à porta”, de M. Night Shyamalan
Shyamalan está no auge de seu estilo hitchcockiano. Nesta que é uma de suas melhores obras, ele subverte todas as convenções de um filme de invasão doméstica.
Andrew e Eric estão com sua filha, em férias, numa cabana perdida no meio do nada. Trata-se do cenário mais clichê para um filme de terror comum. Entretanto, aqui, a invasão não inaugura uma sequência de ação violenta e de perseguição, mas um diálogo tenso e introspectivo que mantém a atmosfera de todo o filme. Tampouco são os quatro invasores seres malignos sedentos de sangue e cheios de motivos perversos. Antes, um bondoso gigante apresenta o grupo numa missão de ordem cósmica e sobrenatural.
Os quatro invasores declaram que receberam revelações de que o mundo será destruído por causa da maldade dos homens, e a única forma de evitá-lo é que um dos três presos naquela cabana se sacrifique. Andrew e Eric vão investigando o que pode estar por trás daquela aparente loucura, e todas as teorias vão ruindo, até que somente sobre a realidade nua e crua. Nada parece mais absurdo do que sacrificar-se por uma humanidade desconhecida, abarrotada de malícia e de iniquidade, mas o absurdo pode esconder o mais profundo mistério de nossa desajustada realidade.
Que alegria ver a sua lista de filmes de 2023, meu amigo!
Ainda não tinha visto o "Menino e a Garça"; vou providenciar isso de pronto; ver com a família.
Me surpreendeu a colocação de filme do M. Night Shyamalan no primeiro lugar. Eu não vi esse; só tinha visto aquele antigo "Corpo Fechado" e aquele de suspense "Fragmentado" de 2016, e não me impressionaram muito. Vou ver esse “Batem à porta”.
Forte abraço!
Boa noite, professor! Dos filmes, que o senhor recomendou de 2022, eu já havia visto alguns, mas achei fantástica a trama de “Mestre Jardineiro”, especialmente a parte em que o ator principal diz que antes de ser jardineiro, matava pessoas e já tinha sido “bom” em odiar. Interessante reflexão acerca da condição humana e como podemos aprender e apreender o bem e o mal. Obrigada, pelas indicações.