Sob determinado aspecto mais geral, podemos dizer que há dois métodos possíveis para a Filosofia. O primeiro, que se pode chamar de realista, consiste em partir da observação das coisas mais próximas e evidentes à percepção para ir construindo, gradativamente, uma reflexão que possa culminar nos fundamentos transcendentes da realidade.
O segundo método, que aqui denominaremos idealista, ao contrário, parte de uma ideia do Ser transcendente postulada a priori para dela derivar as realidades terrenas e contingentes. O método realista opera por indução, e o idealista por dedução.
O patriarca do método realista foi Sócrates, que fez a Filosofia passar definitivamente da infância à maturidade dos grandes sistemas que até hoje perduram. A dialética socrática é um exercício de purificação da razão, que a conduz a proceder sempre modestamente, firmando suas raízes naquelas certezas mais próximas, sobre as realidades mais acessíveis. Apenas sobre essa base a dialética pode avançar sobre as questões mais árduas, sempre aos tropeços, deixando espaço para a dúvida razoável e para as problemáticas mantidas em aberto.
Foi a dialética o método utilizado por Platão e por Aristóteles para erguerem os dois primeiros sistemas filosóficos de nossa tradição, sempre investigando segundo a mesma ordem de fundo, principiando pelas realidades mais básicas e acessíveis ao entendimento para encerrar com uma reflexão metafísica sobre os fundamentos da totalidade do real.
O método idealista, por sua vez, foi inaugurado pelos neoplatônicos. Embora se pretendesse discípulo de Platão, o neoplatonismo, na realidade, trouxe, nesse aspecto fundamental, uma completa subversão do espírito da filosofia do ateniense. Em resumo, a marca própria do pensamento neoplatônico é a eliminação da dialética do sistema platonista.
O neoplatonismo decepa o procedimento maiêutico e parte diretamente do Uno, já não vislumbrado como um fundamento necessário por trás de tudo quanto se vê e se pensa ordinariamente, mas simplesmente dado a priori pelo pensamento, do qual se podem deduzir, pelo raciocínio puro, as estruturas concretas do mundo.
O Platão de Plotino é um estranho “Platão sem Sócrates”. Aqui, não há dialética, nem caminho ascendente, nem dúvida razoável, nem “sábia ignorância”. O Transcendente é apresentado diretamente como um pressuposto do intelecto, que o levará a construir o sistema conceitual a abarcar toda a realidade. Trata-se de uma nova visão acerca do filosofar, um projeto teórico distinto com consequências diversas para a mentalidade e para a cultura.
O método realista é o adequado à natureza da razão humana. O pensamento humano opera sempre a partir da experiência. São os dados empíricos, das coisas mais corriqueiras e passageiras, que iniciam a cognição. Nosso conhecimento vai do próximo e concreto, mais evidente a ele, às abstrações últimas, mais certas e estáveis em si mesmas, mas muito menos translúcidas à mente humana.
No mundo do homem, o conhecer opera sempre na ordem oposta do ser. O conhecer vai do efeito à causa. O terreno seguro do pensamento são as evidências mais imediatas da realidade exterior e apenas a partir delas se pode avançar para a reflexão árdua sobre os fundamentos invisíveis do visível.
O intelecto humano não tem acesso direto a uma ideia do Transcendente. Quando se inverte essa ordem epistêmica e se pretende iniciar o filosofar pelo fundamento último, o que ocorre é a imposição de uma ideia subjetiva do indivíduo filosofante, arbitrariamente utilizada para construir um edifício teórico artificial.
O pensamento puro não tem a capacidade de impor seus conceitos à realidade. A mera coerência dedutiva com um pressuposto transcendente colocado a priori não traz nenhuma garantia de adequação à realidade. Ao contrário, nossos conceitos devem ser formados a partir dos objetos reais percebidos. É a realidade que induz o pensamento ao conceito, não o pensamento que deduz a realidade do conceito.
O método idealista confunde o ofício do filósofo com o do artista. Faz da filosofia uma construção criativa de um sistema teórico imaginado, sem correspondência necessária com os dados reais. Os sistemas idealistas podem ter elevada beleza imaginativa, mas carecem da veracidade objetiva que se espera da especulação teórica. São construções meramente ideológicas, tragicamente distantes do real (é claro que, psicologicamente, o filósofo idealista é levado naturalmente a justificar a realidade que ele vê no cotidiano, motivo pelo qual muitos de seus raciocínios singulares coincidirão com os dados reais, ainda que por deduções inválidas).
Ao longo do Medievo, foi o método socrático-platônico-aristotélico que prevaleceu, ao menos naquelas grandes sínteses que resistiram ao decurso dos séculos (certamente, com recaídas neoplatônicas aqui e ali).
Quando um complexíssimo conjunto de acontecimentos políticos, econômicos, culturais, religiosos desfez o mundo medieval e inaugurou a Modernidade como uma nova era, com instituições completamente novas, do Estado à Ciência, da moral pública às universidades, o novo mundo perdeu contato com a tradição filosófica clássica e ficou à deriva, oscilando, perplexo, entre fragmentos de ceticismos e de cientificismos.
Era necessária uma reinauguração do filosofar, a reabertura de um caminho seguro pelo qual a mente humana pudesse seguir para construir uma compreensão sólida de mundo. Nesse contexto, a questão do método tornou a se impor.
Coube a René Descartes a tarefa de refundar a Filosofia moderna. Para realizá-la, Descartes foi buscar no método socrático a inspiração para uma proposta de trilha sólida capaz de assegurar um filosofar bem fundado ante os desafios da nova realidade.
O projeto cartesiano é, em linhas fundamentais, o mesmo da dialética socrática: um autoexame da razão, a fim de identificar sob quais condições é possível emitir um juízo munido de algum grau de certeza epistêmica.
A dúvida universal de Descartes é uma nova maiêutica, uma modesta assunção da ignorância como ponto de partida para um intelecto honesto. O cogito, seu primeiro resultado, é a demonstração firme da evidência imediata do eu e a refutação, por meio da ironia socrática, do ceticismo absoluto.
Entretanto, uma vez estabelecida a dúvida universal e o cogito, Descartes propõe que a primeira ideia clara do intelecto é Deus, que pode ser, assim, o fundamento de nosso conhecimento de todas as realidades existentes. Ao pôr Deus como princípio do filosofar e base do conhecimento das coisas do universo, Descartes trai o socratismo que abraçara no início de suas reflexões e, ambiguamente, recai no idealismo neoplatônico, deixando de herança para o pensamento moderno essa confusão metodológica.
A metafísica do início da Modernidade, seguindo a esteira cartesiana, adotou o método idealista para construir suas reflexões filosóficas. Kant foi aquele que veio para deslindar a trama. Tantas vezes associado ao idealismo moderno, ele foi, na verdade, o reconstrutor de uma metafísica realista.
Demonstrando a inadequação do proceder dos racionalistas anteriores a si, ele defende, retomando a dialética socrática (que tinha sido a intuição inicial de Descartes), que o conhecimento, para caminhar sobre terreno firme e não sobre ilusões sofísticas, deve partir dos entes mais próximos à experiência.
Seu sistema se inaugura na “Crítica da razão pura”, na qual ele se dedica a delimitar o terreno da Ciência e a estabelecer a legitimidade o âmbito próprio de seus juízos. E o criticismo se encerra, ao final da trilogia, com uma reflexão sobre os fundamentos da totalidade da realidade, a coroar a compreensão humana como seu ponto de chegada, não de partida (tanto no âmbito moral, quanto no âmbito da reflexão do juízo humano sobre a unidade das coisas conhecidas).
O sistema crítico kantiano é uma exemplar retomada do modelo socrático-platônico-aristotélico, realizado no âmago da linguagem moderna, em estrito diálogo apenas com os homens do Iluminismo.
Kant é, muitas vezes, associado ao idealismo alemão posterior, mas isso é um engano tão grande quanto associar Platão ao neoplatonismo. O idealismo alemão é uma continuidade de Kant apenas na exterioridade de certos temas centrais de sua filosofia, mas, no método que dá o fio-condutor, trata-se de uma brutal subversão de todo o sentido do projeto kantiano e de seus princípios basilares.
Fichte, Hegel e toda a tradição do romantismo são espécimes puros do neoplatonismo. Sua obsessão vital está no Absoluto. É um pensamento ocupado exclusivamente dEle e em deduzir todo o sistema das ciências humanas de Suas características fundamentais.
Num típico e anedótico exemplo dos descompassos do método idealista, Hegel, certa vez, escreveu uma “demonstração” de que só é possível existirem sete planetas. Para a sua má sorte, no mesmo ano da publicação do texto, foi descoberto o oitavo.
O idealismo alemão é tão herdeiro de Kant quanto o neoplatonismo o é de Platão. Assim como, sob o aspecto metódico de que estamos tratando aqui, Aristóteles é muito mais sucessor de Platão do que Plotino, a verdadeira continuidade de Kant está na fenomenologia de Edmund Husserl e de alguns de seus sucessores, que buscam erguer a filosofia a partir dos dados mais aparentes da percepção e que vem sendo, em nossos dias, o veio para a renovação do realismo crítico em Metafísica.
Repensar o panorama histórico da Filosofia sob o prisma dessa dualidade metódica, a meu juízo, permite a superação de reducionismos históricos vazios (aqueles que promovem as estéreis confrontações “antigos versus modernos”), ao nos fazer enxergar uma afiliação a escolas sutilmente unidas por uma escolha fundamental muito mais estável e fundada num conflito perene do pensamento humano.
É possível, de um lado, estabelecer um tronco que congrega Sócrates, Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Husserl e certas vertentes da fenomenologia. De outro, um veio paralelo a conectar os neoplatônicos, Leibniz, Wolff, Fichte, Hegel e todo o idealismo alemão.
Segundo meu parecer, é a primeira vertente aquela capaz de corrigir os rumos da Filosofia atual, partindo do chão da experiência ordinária, onde, humildemente, tateamos as impressões digitais da Transcendência criadora e sustentadora.
KAROL WOJTYLA e EDITH STEIN estariam na fenomenologia seguida de Husserl?