É curioso que o terraplanismo, um delírio que parece surreal demais para que gente letrada realmente acredite nele, tenha voltado à moda justamente em nossos tempos, de fragmentação da sociedade em guetos ideológicos.
Se segurarmos o riso e olharmos atentamente para o fenômeno, ele traz uma característica instrutiva. O terraplanismo, ao menos em sua versão mais repetida, não é uma tese meramente “geométrica”, ou seja, que simplesmente altera o formato da Terra de esférico para plano, num universo mais ou menos igual ao que conhecemos.
O terraplanismo é uma cosmologia radicalmente distinta. Em seu esquema, a Terra não é mais um planeta na galáxia, em meio aos corpos celestes que identificamos no céu. A Terra é o mundo. A Terra plana é o “chão” do universo, e todos os corpos celestes (o sol, a lua, os outros planetas, as estrelas) se movem sobre ela, dentro de uma abóbada que se fecha pelas “bordas” da Terra.
Quer dizer, o terraplanismo é uma redução do mundo ao nosso planeta e à nossa perspectiva. Não é que estejamos no centro do mundo (geocentrismo), mas somos o mundo. Tudo o que existe está dentro da Terra e se coloca em referência a ela.
O terraplanismo, como teoria astronômica, é, obviamente, tema para os psiquiatras, não para este ensaio. É interessante pensar, por outro lado, num “terraplanismo existencial” que pode habitar inadvertidamente em cada um de nós.
Trata-se da ilusão de que o mundo se reduz à realidade que conhecemos, desde nossa limitadíssima perspectiva. Ocorre quando nos esquecemos de que a realidade transcende completamente nossas capacidades cognitivas. Vemos o mundo desde um ponto de vista muito específico, para o qual apenas um pequeno recorte das coisas existentes é perceptível, sempre desde um ângulo particular, que realça determinados aspectos e obscurece outros.
Com muita facilidade, confundimos essa estreita visão que temos da imensidão de realidades, com suas múltiplas camadas, com a totalidade do mundo. Julgamos todos os fatos, todas as opiniões de nossos semelhantes, todos os comportamentos, todos os costumes, todos os boatos que ouvimos segundo essa pequena porção do real que conhecemos. Permanecemos infensos ao fato de que são inabarcáveis as circunstâncias que desconhecemos, as experiências que nunca vivemos, os pontos de vista sob os quais nunca olhamos nada, as facetas da realidade que ignoramos totalmente e em que talvez outras pessoas vivam imersas, tão imersas quanto nós em categorias que nos são cotidianas (e estranhas ao mesmo próximo).
No Brasil, as últimas eleições presidenciais foram marcadas por uma forte polarização entre dois candidatos radicalmente opostos. Decidido por uma pequena margem, o pleito contou praticamente sessenta milhões de votos tanto para Lula, quanto para Bolsonaro.
Escutei inúmeras vezes a mesma frase, repetida por gente de direita e de esquerda – “não consigo entender como alguém vota em (nome do outro candidato)”. Essa frase, se verdadeira, deveria ser dita com contrição. Que não tenhamos nenhuma ideia dos motivos que levam sessenta milhões de concidadãos nossos a agir de determinada forma não diz nada sobre essas pessoas, mas apenas sobre a limitação de nossa percepção da realidade que nos cerca.
Ao contrário do que gritam os ideólogos, não existem sessenta milhões de comunistas, nem de fascistas, nem de defensores da corrupção, nem de genocidas, nem de racistas, nem de imbecis manipulados pela mídia. Certamente, alguns dos brasileiros são essas coisas, mas a maioria são pessoas como nós, com uma experiência particular de realidades por vezes completamente ocultas à nossa imaginação, com uma criação específica e um acesso a informações tão limitado quanto o nosso.
Neste país continental, da Amazônia às cercanias do Rio da Prata, vivem populações inteiras em condições que a maioria de nós jamais sequer ouviu falar. Não temos qualquer ideia de inúmeras realidades que constituem os problemas mais próximos e as dificuldades mais urgentes de muitos de nossos compatriotas. Não fazemos a mais pálida imagem da história, das experiências, dos grupos sociais que moldaram a ordem de valores que os orientam em suas escolhas. Cremos que nosso modo de agir politicamente, segundo os princípios que adotamos e sua aplicação prática, é o único racional simplesmente porque é o único que vislumbramos em nosso pobre e engaiolado horizonte.
Se sessenta milhões de semelhantes votaram num candidato que consideramos abominável, antes de supor que fomos transportados para a Alemanha nazista ou para um gulag, poderíamos fazer o saudável exercício de cogitar que não enxergamos mais do que uma ínfima parte de tudo que há para enxergar e que o país não se localiza inteiramente dentro de nossa classe social, de nossos problemas prioritários, de nosso grupo de amigos, da visão de mundo que absorvemos de nossos formadores de opinião.
Em sua obra-prima “Cálice”, Chico Buarque canta “Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um fato consumado”. Podemos ouvir sua sugestão e desconfiar dessa sutil e incômoda possibilidade. Talvez o mundo não seja pequeno. Talvez a terra não seja plana.
Talvez haja um universo imensurável, dentro do qual somos menores do que um grão de poeira, e o quintal da nossa casa não seja o mundo, como imaginamos. Talvez os esquemas que tenhamos aprendido em nossas vidas não deem conta de explicar a multidão das circunstâncias humanas nesta terra. Talvez o cisco dos preconceitos e dos vícios de mentalidade que julgamos observar no olho do próximo precisem menos de nossa atenção do que a trave que nem sabemos que obstaculiza nossa própria visão.
Marx não estava errado quando apontou que nossas visões de mundo são causadas por nossa condição socioeconômica. É certamente falso que todas as ideias que tenhamos sejam mero reflexo de uma infraestrutura material, mas é bastante verdadeiro que nosso conjunto de crenças é, em larga medida, gerado por fatores sociais ideologicamente mascarados.
Quem quiser constatá-lo, que faça o experimento de registrar as opiniões que ouve em seu dia a dia, das pessoas de seu círculo, de sua classe social, de seu grupo religioso, de seu nível de escolaridade. Encontrará uma espantosa similitude no discurso sobre os mais variados temas da opinião pública.
Nenhum ser humano possui exclusivamente opiniões críticas, que passaram pelo filtro da reflexão cuidadosa. Se temos boas disposições, faremos o esforço constante de purificar nossos juízos e passá-los por um reto tribunal crítico, buscando ser conscientes daquilo que realmente pensamos, depois de uma busca autêntica pela descoberta da verdade, e daquilo que simplesmente recebemos de nosso meio.
Contudo, sempre teremos um grupo de crenças laterais, que formamos sem a devida crítica racional. Lutaremos para expulsar essas pré-noções acríticas daquilo a que nos dedicamos centralmente. Eu me esforço tremendamente para que, em Filosofia, todos os meus juízos sejam fruto de um autêntico domínio da minha área do saber, transcendendo o palpite e a opinião desautorizada. Em política, em futebol, em meus outros hobbies, sou autoconsciente de que minhas visões são largamente influenciadas por aquilo que absorvo de minha experiência, de minha criação, de meu círculo de amigos, dos influenciadores que leio.
Assim somos todos nós. É inevitável. Se buscássemos um justo autoconhecimento e compreendêssemos o quanto de nossa cosmovisão é produto da unilateralidade com que nos habituamos a perceber o mundo, a receber informações, a acreditar em determinadas pessoas e a desacreditar outras, a reproduzir o que ouvimos com frequência, veríamos o quanto é ridículo que julguemos o outro que não pensa como nós, que estejamos convictos de que é um pobre manipulado pelos meios de comunicação ou uma pessoa de caráter frágil e corrupto.
“A grande mídia manipula a informação!” E como você se informa, no lugar da “grande mídia”? E você acha mesmo que seu jornal de nicho, que seu blogueiro favorito também não entrega informações segundo um recorte particular, uma visão de mundo já dada, um ângulo de visão parcial e com diversos pontos cegos?
Você já reparou que convive com um grupo de pessoas que lê os mesmos jornais que você, que consome os mesmos formadores de opinião, que repete as mesmas ideias em todas as rodas de conversa? Você acha mesmo que seu grupinho é “privilegiado”, iluminado pela verdade, enquanto todos os demais são manipulados pelos professores comunistas, pela Rede Globo, pelo capitalismo, pelo patriarcado, pela engenharia social e pelo Elon Musk? Será que todos manipulam, menos o guru do seu gueto, o blog que você acompanha, o canal que possui exatamente a sua ideologia preferida?
Abramo-nos à verdade: o mundo não é pequeno, e a vida não é um fato consumado. Somos intelectos ínfimos, tateando no escuro em busca de uma compreensão que será sempre limitada, sempre parcial, sempre mediada por um conjunto de condições que nos vêm dadas e em meio às quais devemos viver e fazer o melhor. Se queremos chegar a alguma verdade, mesmo que pálida, devemos encarar o mistério da vastidão do universo, assumindo, de partida, nossa miserável ignorância e abandonando definitivamente o sonho terraplanista de um mundo que cabe no quintal de nossas convicções comezinhas.
Parabéns pelo texto, professor. Esse assunto sempre me faz refletir muito!
De uma maneira, cada um possui a sua própria realidade. A forma que um indivíduo experiencia e enxerga o mundo é única e é construída a partir de diferentes variáveis, vivências e contexto. E por mais que possamos compartilhar certos fenômenos, nunca será possível sobrepor uma visão à outra, ou como dizem, enxergar pelas lentes de outrem.
E acho que aí é que está o nosso grande desafio; construir repertório a partir daquilo que nos é alheio, que nos causa perplexidade e espanto e não somente buscar mais substrato para ratificar nossas crenças.