“As ideias têm consequências” tornou-se um dos jargões mais repetidos em certos meios culturais contemporâneos. A famosa frase, plasmada definitivamente no título de um dos livros mais supervalorizados entre aqueles que foram promovidos na “onda neoconservadora” (e o páreo é duríssimo), uma obra assinada por Richard Weaver, epítome do reducionismo barato e que dedica uma de suas teses centrais a demonstrar que o jazz é a marca da decadência civilizacional, tornou-se um cavalo de batalha daqueles que desejam explicar os males do mundo atual por dois ou três clichês de filosofia enlatada.
“O uso do cachimbo entorna a boca”, diziam nossos avós. Não é difícil enxergar o fenômeno da “boca torta” nos profissionais das mais diversas áreas. Com muita diversão, reparamos a “boca torta” no advogado que sempre fala em juridiquês e parece disposto a analisar todos os assuntos como se imediatamente pronto a patrocinar um cliente, no juiz que pensa possuir soluções para todos os conflitos da vida, no policial que enxerga crimes até na lista telefônica.
Muitas vezes, os que nos dedicamos à Filosofia cremos, talvez inconscientemente, ter superado idiossincrasias como essa pela superioridade ontológica de nosso objeto de estudo. Se é verdade que a Filosofia possui um estatuto epistêmico privilegiado, que lhe impõe um olhar reflexivo e (auto)crítico sobre os pontos de vista particulares de todas as ciências e atividades humanas, isso não garante ao filósofo (ou ao estudioso de Filosofia, para os que evitam esse título) estar livre do mal da “boca torta”.
A mentalidade “as ideias têm consequências” é a “boca torta” do filósofo (e, certamente, quem enxerga de fora a Filosofia desde uma visão mais pragmática da vida e do trabalho o nota com a mesma graça com que notamos as manias do advogado ou do economista). Tão acostumado a observar a realidade e a história sob o prisma das ideias filosóficas, ele termina por ver todo o processo humano como um produto daquilo que se pensa nas universidades ou nos círculos intelectuais.
Sendo a “boca torta” um hábito humano tão universal, essa tendência não se restringe a nenhum grupo particular de filósofos. Encontra-se por toda a parte. Meu mestre Alejandro Vigo chama o grande tomista e medievalista Étienne Gilson de “o Heidegger católico”. Tanto Heidegger quanto Gilson creem que a história da humanidade é uma história do ser, e ambos supõem que a decadência humana pode ser explicada por alguma espécie de perda do sentido do ser. Diferem apenas em qual ponto da história das ideias localizam tal perda, o primeiro a vendo desde Sócrates e o segundo a acusando no fim da Idade Média, com o advento do nominalismo.
Nessa linha, em alguns ambientes, escutamos a torto e a direito que “Guilherme de Occam originou a Modernidade com sua revolução metafísica”. Somos, então, levados a acreditar que toda uma intrincada teia de profundas alterações no mundo, com o surgimento de um novo sistema político, de uma nova economia internacional, de novos continentes até então desconhecidos, de novas tecnologias de potência inimaginável ocorreu por causa das ideias de um frade franciscano e de sua ruptura com a metafísica tomista.
Outros, mais empolgados, vão além e repetem raciocínios brilhantes como “Descartes dizia ‘penso, logo existo’. Vejam que, aí, ele antepõe o pensamento à realidade, como se minhas ideias determinassem o real. Essa é a origem da ideologia de gênero”. Num prodígio intelectual absoluto, a mente brilhante saltou, numa acrobacia digna do ouro olímpico, de uma frase cartesiana (aliás, retirada de Santo Agostinho) que simplesmente mostra a evidência imediata do eu e refuta, com ironia socrática, o ceticismo absoluto para um problema do século XXI, inteiramente alheio ao mundo do matemático francês.
A tentação de explicar tudo por um defeito nas ideias filosóficas é, naturalmente, sedutora. Quando simplesmente se decora meia dúzia de jargões atribuídos a um ou a outro filósofo de quem não se gosta, sem qualquer preocupação de entender a fundo o que disseram, é possível relacionar isso a qualquer mal contemporâneo. A crítica filosófica torna-se coisa fácil: uma frase solta pode significar qualquer coisa, e qualquer relação inventada com qualquer realidade atual parece coisa inteligentíssima, a provocar aplausos da plateia incauta.
Assim, os problemas do mundo podem ser diagnosticados com impressionante velocidade. Tudo vem de alguma ideia equivocada de Duns Scot, de Occam, de Descartes, de Kant, de Hegel. Por que estão defendendo o aborto? Ora, porque o cogito cartesiano antepõe o pensamento à realidade e populariza o idealismo. Por que as pessoas são muito consumistas? Elementar; porque, a partir de Kant, o tempo passou a ser visto como subjetivo. O Flamengo perdeu? É a antropologia hobbesiana em ação!
O título deste artigo é, certamente, provocativo. É claro que as ideias que triunfam entre a elite acadêmica tornam-se muito influentes na formação da cultura da sociedade. Entretanto, na maioria dos casos, elas são apenas mais um na complexa cadeia de fatores determinantes dos rumos tomados pela história humana. Não raro, inclusive, elas são um produto de acontecimentos históricos e uma resposta a eles, às vezes justa, às vezes apressada e imprudente (quase sempre, as duas coisas ao mesmo tempo; inadequada em algum aspecto, mas atendendo a uma necessidade justa dos tempos).
Filósofos não acordam de manhã e decidem mudar o mundo fabricando uma nova filosofia. Normalmente, seus debates e suas ideias são condicionados por necessidades das suas circunstâncias, às quais precisam responder como homens de sua época. Crer que basta contradizer os “erros dos pensadores” para que possamos consertar o mundo é inverter completamente a ordem das coisas. É perder de vista, em fatal ingenuidade, que cada circunstância nos lança um desafio complexo, que nunca será solucionado apenas pela repetição de fórmulas antigas, vindas de um passado supostamente dourado.
As Grandes Navegações descobriram novos continentes e povos inteiros sem qualquer referência cultural remota com os europeus. Nesse momento, o único modo de se chegar à América era nessas perigosas navegações organizadas pelos Estados. Não era possível comprar passagem numa agência de viagens. A Igreja, desejosa de evangelizar os povos autóctones, precisava que as autoridades civis levassem os missionários em suas viagens. Isso foi muito mais decisivo para a secularização das relações Estado-Igreja do que ideias sobre laicidade de Marsílio de Pádua.
Os empreendimentos coloniais intercontinentais e a Revolução Industrial tornaram as relações econômicas infinitamente mais complexas do que poderia ser abarcado pela economia comunitária de um feudo medieval. Isso determinou o surgimento do capitalismo, e não as meditações de Adam Smith sobre a pleonexia.
E os interesses financeiros desse mesmo capitalismo em obras de reprodutibilidade simples e automática, prontas para o consumo em massa, é que rebaixaram a arte aos imperativos utilitários do entretenimento comercial, não o abandono da estética clássica por algum filósofo materialista.
A história da humanidade não é uma história do ser. Não é possível explicar as dinâmicas dos acontecimentos políticos, econômicos, científicos pela dialética das ideias universitárias. Antes, muitas vezes, é preciso entender as ideias a partir dos eventos em que se originam e, em vez da sanha refutatória que tudo rejeita sem estudar nem discernir, adotar a abertura sensata e serena de quem compreende que situações novas invocam novas perspectivas.
Quando a Reforma Protestante fraturou a Cristandade e levou ao desentendimento geral e sangrento interno a um mesmo tecido cultural, pela primeira vez na história, precisamos pensar em soluções morais e políticas para sociedades marcadas pelo pluralismo, pelo dissenso e sem um acordo metafísico e religioso de fundo. Hobbes não inventou isso. Ele simplesmente viu que a moralidade moderna agora precisava buscar uma gramática comum para um novo tipo de diálogo racional, inédito nas sociedades antigas. Por mais problemática que seja sua filosofia pessoal, nesse ponto fulcral nem o mais tradicional dos aristotélicos pode renunciar a ser hobbesiano – ainda que muitos o tentem.
A Filosofia nada ganha quando lhe atribuem o papel de grande mestra e fundadora da realidade, motor da marcha da história. É preciso libertá-la dessa vinculação causal espúria com acontecimentos que em muito superam o seu domínio.
Um estudo filosófico sem contaminação ideológica exige que deixemos de forçar relações entre teses especulativas e os problemas políticos do noticiário. A Filosofia deve ser contemplada com ócio e atenção rigorosa, não atacada ou defendida por quem levanta alguma bandeira da moda.
As ideias, como os homens, têm seu contexto e sua circunstância, mas não os criam nem os governam. São, como os homens, filhas do tempo, navegando pelas intempéries da história com uma luz que só pode iluminar quem não estiver perdido nas marés do discurso fácil.
Concordo em grande parte, principalmente em relação a redução das mudanças complexas da humanidade a conceitos filosóficos específicos ou declarações de pensadores famosos. Além do exagero da influência sobre essas ideias. Também concordo que grande parte das mudanças históricas tem a ver com novas tecnologias e arranjos produtivos.
Eu diria que ideias soltas não tem grande poder de transformação, mas quando se atrelam a instituições capazes de reproduzi-las, aí de fato aparecem as consequências.
Para que as ideias realmente moldem o mundo, elas precisam ser adotadas, adaptadas e promovidas por instituições ou grupos influentes. É a interação entre ideias e sua manifestação através de instituições que dá forma a grande parte das mudanças na história.
As ideias são abstrações e, em sua forma pura, não têm a capacidade de afetar mudanças tangíveis. No entanto, quando essas ideias encontram ressonância com grupos de indivíduos e instituições, elas se tornam mais do que meros pensamentos – tornam-se movimentos.
Instituições, sejam elas governos, religiões, ONGs, grupos ou "fraternidades", como a Maçonaria, fornecem a estrutura e os recursos necessários para promover, proteger e disseminar ideias. Elas transformam ideias abstratas em agendas concretas e ações tangíveis.
A Maçonaria é um exemplo proeminente. Ela incorporou ideais iluministas sobre razão, liberdade e fraternidade, e ao fazer isso, se tornou uma força influente em muitas revoluções e reformas em diferentes países, promovendo ideais iluministas através de seus membros influentes e ações coordenadas.
A combinação de ideias poderosas com instituições capazes pode criar uma sinergia que amplifica o impacto de ambos. Ideias por si só não têm consequências, mas ideias, quando aliadas a instituições organizadas, têm sim consequências.
Texto primoroso como sempre. Dá gosto de ler.
Gustavo você reparou que a interação confirma a tese do seu texto?