Estudar Filosofia a sério não é construir um discurso retórico de palanque. A análise detida e honesta de obras filosóficas nos leva a respeitar a imensa complexidade da realidade e dos grandes autores da tradição, evitando sempre o pensar por jargões, que rotula sem discernir, que “assume um lado” sem compreender de que fala. O exercício da boa filosofia será sempre um incômodo para toda narrativa enlatada, para as “terríveis simplificações” que asfixiam o pensamento.
Um exemplo desses discursos é a cantilena conservadora do “marxismo cultural”. O que se vem chamando de “marxismo cultural” é, na verdade, uma salada de elementos completamente díspares da realidade, tirados de contexto e improvisados num Frankenstein teórico.
A narrativa do “marxismo cultural” é uma solução ad hoc para que se possa encontrar uma continuidade entre a tradicional esquerda marxista e a nova esquerda progressista, surgida em maio de 68. Tal elo é, entretanto, uma construção mental que só existe no interior de mentes ideológicas. Entre marxismo e progressismo há uma ruptura, não uma continuidade.
Quem fizer uma análise detida das pautas morais da esquerda contemporânea (aborto, pautas de gênero, drogas) verificará que todas se fundamentam numa radicalização do ideal liberal do indivíduo autônomo (a autonomia da mulher de decidir sobre o próprio corpo, a autonomia individual de decidir a própria sexualidade e o próprio gênero, e assim por diante).
Nada disso é marxista, nem faz qualquer sentido numa cosmovisão marxista. Diga a um marxista que o indivíduo tem liberdade de escolher o próprio sexo, e ele rirá da sua cara. Se o próprio indivíduo já é uma ficção ideológica burguesa, que dirá uma liberdade individual desencarnada que se impõe até sobre os fatos biológicos. Isso nada mais é do que um liberalismo antropológico radicalizado e misturado a um niilismo pós-moderno, vindo do estruturalismo francês.
O “marxismo cultural” é, na verdade, um “liberalismo cultural”. Não é uma estratégia da esquerda de migrar da luta econômica para a luta cultural, mas uma capitulação do marxismo ante uma nova esquerda que se difundiu e ofuscou sua influência. Com o fracasso das sociedades socialistas e o poderio econômico das oligarquias do capitalismo, o pensamento marxista se esgotou. Os velhos marxistas morreram e foram substituídos por uma geração completamente diferente, que em nada é sua herdeira, mas possui outras raízes e outros marcos teóricos. O marxismo não se transformou; ele decaiu de sua hegemonia e perdeu seu protagonismo.
Na história do pensamento, há um único sentido coerente e consagrado para a expressão “marxismo cultural”. Até o início do século XX, o marxismo vivia à parte da universidade. Por um lado, porque as universidades o proscreviam por ser um pensamento revolucionário e prejudicial à ordem social. Por outro, porque o marxismo, em determinado sentido, era uma filosofia clássica. As escolas filosóficas da Antiguidade não eram meras correntes de pensamento acadêmico, mas modos de vida. Estoicos, epicuristas, cínicos moldavam seus hábitos, costumes, valores conforme o modelo de vida compartilhado por cada comunidade filosófica específica.
O marxismo, em sua primeira geração, buscava ser um modo de vida coerente com as ideias de Marx. Ora, se Marx propunha que a Filosofia serve à práxis, que a missão do filósofo é transformar o mundo pela ação política e não compreender a realidade, o locus do marxismo são as demonstrações de rua, não as salas de aula. Os próprios marxistas, por conseguinte, buscavam manter-se afastados da universidade, entendendo que não era ali seu lugar.
Em 1923, um estudante marxista chamado Felix Weil conseguiu que seu abastado pai fizesse uma generosa doação à Universidade de Frankfurt, com o encargo de que ali se fundasse um núcleo de pesquisas marxista. Assim iniciou-se o Instituto para Pesquisa Social, que ficou conhecido como Escola de Frankfurt.
Os marxistas da Escola de Frankfurt eram certamente heterodoxos dentro do marxismo e criticados pelos marxistas tradicionais por aderirem ao modo burguês de pensamento acadêmico. A isso podemos chamar de marxismo cultural, por oposição ao marxismo prático, de movimentos partidários. Um marxismo universitário, acadêmico.
A Escola de Frankfurt, de fato, buscava fazer uma crítica cultural, em substituição à análise da luta de classes por categorias econômicas. Para saber o que era essa crítica cultural, deve-se recorrer não às fantasias produzidas por conservadores que nada estudaram, mas à leitura direta da “Dialética do esclarecimento”, obra central de Max Horkheimer (1895-1973) e de Theodor Adorno (1903-1969).
Se se retirasse a capa do livro e se substituísse o nome dos autores por Alasdair MacIntyre ou por Patrick Deneen, não haveria nenhuma estranheza por parte do leitor. Qualquer tradicionalista antimoderno subscreveria sem dificuldades o essencial das teses de Adorno e de Horkheimer.
Adorno e Horkheimer denunciam com toda a virulência a cultura de massas. A indústria cultural é um produto técnico de uma elite financeira que visa à desagregação da cultura e do tecido social por meio de uma uniformização que aliena o povo. Na cultura de massas, seja no cinema, seja no rádio, tudo tende a um padrão único e simplório, enfiado goela abaixo de quem consome, anestesiando-lhe a inteligência e lhe destruindo o senso da arte.
Até mesmo a arquitetura segue o mesmo estilo tanto nos países totalitários quanto nas democracias liberais. Os edifícios modernos são sombrios monumentos de concreto, que aprisionam a vida numa linha de produção e transformam as cidades em quintais dos grandes grupos comerciais.
Adorno e Horkheimer acusam a cultura de massas de destruir a arte. Comentam que o cinema e o rádio sequer precisam se apresentar como arte; declaram explicitamente que o que fazem é puro entretenimento, justificando assim com a captura da audiência toda a sorte de lixo que produzem. São uma indústria – e com as vultosas cifras de seu lucro respondem a qualquer questionamento por sua contribuição social. Para os filósofos, toda a arte é suplantada pelos imperativos econômicos da rentabilidade de mercado. Em nome da manutenção dessa poderosa indústria, cometem-se sacrilégios contra o patrimônio artístico, com adaptações radiofônicas de Beethoven para acordes de jazz ou adaptações paupérrimas de Tolstói para o cinema.
Nada disso, no parecer de Adorno e de Horkheimer, se explica pelo desejo espontâneo do público, conforme gostariam de fazer parecer os proponentes da lógica do mercado. Antes, nas sociedades modernas, o consumo é induzido pela propaganda da indústria, que emprega todos os seus recursos técnicos na produção de peças uniformizadas e de fácil assimilação por uma sociedade paulatinamente desacostumada a degustar a arte.
A indústria cultural atua, assim, como uma extensão da linha de montagem das fábricas. É preciso condicionar o indivíduo a, em seu lazer, comportar-se e pensar segundo a mesma uniformidade esquemática de uma linha de produção. A arte já não transmite as grandes inquietações humanas, mas apenas reproduz fórmulas técnicas destinadas a embotar a inteligência de cada homem pela repetição de padrões pré-estabelecidos. A breve sequência de intervalos que caracteriza qualquer canção de sucesso, as receitas de enredo que se repetem em cada filme; tudo compete para essa redução da vida humana a uma robótica padronização de gostos e de parâmetros.
Desse modo, as indústrias cinematográficas, as produtoras musicais, as editoras de revistas e de folhetins adquirem um poder jamais sonhado por qualquer classe artística pré-moderna. A tal megaindústria cabe a censura e a aprovação daquilo que pode ser considerado aceitável, segundo os padrões da nova elite econômica e de seu modelo social. Nenhum artista clássico, nem as sinfonias de Mozart, nem os poemas de Victor Hugo, podem ser adaptados para os palcos ou para o cinema sem antes passarem pelo filtro dos valores do capitalismo liberal.
Como se pode ver, Adorno e Horkheimer são movidos por um ódio visceral à cultura de massas, que responsabilizam pela decadência cultural patrocinada pelas elites liberais. Em outro texto, Adorno defende a música clássica como antídoto contra essa desagregação cultural promovida pelo capitalismo.
Eis, portanto, a crítica cultural da Escola de Frankfurt: uma acusação contra a decadência da arte e sua transformação num produto de consumo e uma apologética da cultura clássica como um meio de revolução contra os padrões impostos pelos oligopólios da indústria. Tal “revolução cultural” poderia muito bem ser proposta por Roger Scruton ou por Jordan Peterson.
Hoje, há quem diga que a Escola de Frankfurt é a responsável por Anitta e pelo sertanejo universitário. Nada mais distante da realidade. Horkheimer e Adorno foram duas das mais tremendas vozes que se levantaram contra a derrocada da cultura e a redução da arte ao entretenimento barato.
Ficamos, enfim, com uma brilhante ironia: o “marxismo cultural” (o verdadeiro, não o inventado pelo discurso enlatado neodireitista) pode ser um aliado do conservadorismo na batalha contra a dissolução cultural promovida pelo capitalismo liberal.
Gustavo, excelente texto!
Senti, entretanto, falta de um comentário a respeito de Marcuse. Seus textos foram bem além da mera crítica à cultura de massas - Eros e Civilização é quase que a "carta magna" do Maio de 68, certo?
Obrigado por esse ótimo texto! Embora eu seja leigo, me atrevo a acrescentar que esse "liberalismo cultural" - que vc mencionou - tb não existe como fruto de um projeto mirabolante arquitetado por "mentes malvadas" que visam dominar o mundo (rsrs)", mas é o resultado natural de uma certa tendência humana pra deixar-se seduzir por manifestações mais superficiais e que prometem uma, inexistente, autonomia ilimitada. Falando como Cristão: a queda de nossa cultura é o reflexo esperado da queda do homem pq a virtude demanda esforço, o vício não....