Kant tem fama de ser um pensador demasiadamente obscuro, que escreve coisas fora do alcance da realidade ordinária, uma espécie de delírio hermético que não corresponde a nenhuma questão real de homens de carne e osso.
Boa parte da responsabilidade por essa fama pode ser, sem dúvida, atribuída aos próprios expositores de Kant, que, contaminados pela cegueira especializante da exegese analítica, apresentam um filósofo sempre esquartejado, com pequenas partes de sua obra sendo postas em lupa como se tivessem sido concebidas em inteira independência do restante.
Assim, uns, com a “Dialética transcendental”, provam que Kant era um decidido antimetafísico. Outros apresentam alguns conceitos formais de sua ética para falar de um cosmopolitismo liberal, neutro em relações às concepções de bem de cada indivíduo. Os de Relações Internacionais usam textos políticos como “À paz perpétua”. Os de Estética estudam o primeiro livro da terceira “Crítica”.
O Kant do mundo acadêmico hoje é um pensador caprichoso, que deu opiniões variadas sobre temas distintos conforme seu gosto ia mudando de fase (uma espécie de Leandro Karnal). Um dia, escreveu uma teoria do conhecimento para se livrar de toda a metafísica clássica. No outro, disse alguma coisa sobre ética; em seguida, sobre estética. Quando o convidaram à Assembleia da ONU para fazer um de seus discursos empolgantes sobre qualquer tema (numa mesa em que, logo antes, intervinha Greta Thunberg), aproveitou para propor um republicanismo liberal que levaria à paz definitiva.
Nada mais distante de um filósofo da envergadura de Kant. O mestre de Königsberg, como todos os grandes nomes da história da Filosofia, construiu, em cada detalhe, um sistema integral de pensamento, em que cada parte existe em função de um todo. A epistemologia kantiana, a ética kantiana ou a estética kantiana não são ideias separadas que Kant teve em algum momento da vida, mas casos particulares de um abrangente projeto de esclarecimento da realidade.
Recuperar Kant em todo o fulgor de sua brilhante obra filosófica implica resgatar uma compreensão de seu pensamento como um sistema orgânico, movido por um objetivo de fundo, inteiramente conectado com as questões de sua época e dando uma resposta vigorosa aos dilemas que ainda são nossos, como filhos da Modernidade que somos. Sem deixar o rigor acadêmico que exige, em certa medida, uma especialização e um aprofundamento em obras e em textos específicos, é preciso alimentar essa compreensão geral, que toma o filósofo desde a perspectiva magnânima que era acalentada pelo próprio quando nos legou seu pensamento.
O problema que assola o espírito de Kant é o grande drama de toda a Filosofia moderna. O surgimento da nova Ciência, que tomava a natureza desde um ponto de vista estritamente mecânico e que vinha produzindo espantosos êxitos tecnológicos, aliado a um ceticismo acalentado desde a perda do sistema metafísico medieval e sua dissolução no nominalismo, trazia uma grande angústia aos homens desse tempo. Parecia que agora somente a Ciência poderia dar respostas claras, e tudo aquilo que escapasse das causas mecânicas e do domínio da Matemática estava irremediavelmente além das fronteiras do conhecimento humano.
Acontece que o intelecto humano busca, por natureza, o infinito e as respostas últimas. As Leis de Newton ou a história da Tailândia podem ser interesses particulares deste ou daquele sujeito, mas o que todo homem, por sua condição, deseja, no íntimo de sua alma, saber são as respostas às questões sobre o sentido de tudo quanto existe. Ainda é possível filosofar num mundo cada vez mais reduzido à compreensão mecânica das utilidades? Eis a questão que anima o pensamento moderno.
Em resumo grosseiro, a essa questão houve dois tipos de resposta. De um lado, os racionalistas, desde Descartes, criam que a Metafísica podia ser feita a partir do método matemático, dando-nos respostas seguras e claras ao raciocínio. Opostamente, os empiristas criam não ser isso possível e, por isso, rejeitavam a Metafísica como verdadeiro conhecimento. Tanto racionalistas quanto empiristas compartilhavam o mesmo horizonte: a crença de que o conhecimento humano se situa na Ciência, e dentro desta deve estar toda forma de pensamento que se pretenda afirmar como legítima (como a Metafísica).
É nesse cenário que Kant começa a filosofar. Seu objetivo é desfazer a confusão que levou o pensamento moderno a um beco sem saída. Para tanto, deve-se retornar à velha ideia da maiêutica socrática: antes de elaborar um juízo sobre qualquer coisa, o homem deve fazer um autoexame da razão, a fim de identificar o que pode ser realmente afirmado com certeza e qual o grau de legitimidade que possui cada tipo de juízo humano, nas distintas circunstâncias.
O tribunal crítico erigido por Kant nada mais é do que uma excelente versão moderna da maiêutica. A missão de seu sistema filosófico é compreender o estatuto de cada atividade da razão humana, de modo a lhe estabelecer com rigor os limites e o âmbito próprio.
A “Crítica da razão pura” se ocupa precisamente da Ciência, como um conhecimento apodíctico e universal, capaz de evoluir tecnicamente. Trata-se da investigação acerca daquilo em que pode se fundar uma Ciência e quais os limites específicos.
Segundo Kant, há dois tipos de juízos humanos: os juízos analíticos e os juízos sintéticos. Os juízos analíticos são aqueles que decorrem do próprio conceito, são mero desdobramento conceitual (por exemplo, “o triângulo tem três lados”). São a priori, não dependem da experiência e, por isso, são inteiramente universais.
Os juízos sintéticos são os que acrescentam algo ao conceito. O caso por excelência são os juízos sintéticos a posteriori, os juízos empíricos, nos quais a experiência une os termos do juízo (por exemplo, “a mesa é branca”; não há nenhum vínculo entre os conceitos de mesa e da cor branca, é a experiência que me mostra que esta mesa que vejo é branca).
Aqui, começa a revolução de Kant. Ao contrário do que pensa toda a Filosofia moderna anterior, tanto racionalista quanto empirista, ele mostra que não se pode fundar uma Ciência em juízos analíticos. Juízos analíticos não nos dão conhecimento algum. A dedução não pode nos trazer conhecimento novo, mas apenas explicitar o que estava presente nos conceitos anteriores. Um dos requisitos de um silogismo válido é justamente que nada pode haver nas conclusões que não esteja nas premissas. Portanto, nenhum conhecimento advém de juízos analíticos.
Juízos sintéticos a posteriori tampouco podem fundar uma Ciência, pois dependem da experiência e, assim, não possuem universalidade, mas uma validade restrita às contingências empíricas da experiência de cada um.
A descoberta de Kant está em que, se é possível o conhecimento científico, é por estar fundado numa terceira espécie de juízos: os juízos sintéticos a priori. Trata-se de juízos que operam uma verdadeira de síntese de conceitos não vinculados intrinsecamente, mas uma síntese fundada totalmente a priori, anterior a qualquer experiência.
A tarefa da “Crítica da razão pura”, dessa forma, é esclarecer se e como são possíveis juízos sintéticos a priori nas diferentes disciplinas que se pretendem Ciências. Para Kant, são três as que se apresentam como tais: a Matemática, as Ciências da Natureza e a Metafísica. Cada seção da primeira “Crítica” trata de uma destas: a “Estética transcendental” da Matemática, a “Analítica transcendental” da Física, e a “Dialética transcendental” da Metafísica.
A descoberta kantiana de que a Matemática não está fundada em juízos analíticos foi um grande abalo para as convicções do pensamento moderno até então. Até aquele momento, todos os filósofos da Modernidade, de Descartes a Hume, coincidiam em considerar a Matemática o modelo científico ideal justamente por ser totalmente analítica, por não depender de nada mais do que análise conceitual.
Kant demonstra que, na verdade, os juízos matemáticos fundamentais não são desdobramentos conceituais. “A menor distância entre dois pontos é uma linha reta”, “cinco mais sete são doze” são, na verdade, juízos sintéticos a priori. Do conceito de ponto eu não extraio nada sobre a menor distância entre dois exemplares dele, nem do conceito da quantidade cinco eu extraio o resultado de sua soma com outra quantidade.
Tais juízos são um alargamento conceitual, que ocorre totalmente a priori na mente humana. Isso é possível porque, no intelecto humano, os dados sensíveis aparecem sempre informados pelo tempo e pelo espaço. Tempo e espaço não são coisas que enxergamos, mas somente enxergamos as coisas no tempo e no espaço. O aparato cognitivo humano é espaço-temporal; os dados percebidos pelos sentidos são sempre moldados espaço-temporalmente.
Ocorre que nossa mente tem a capacidade de trabalhar com o tempo e o espaço de forma pura, sem objetos recebidos da experiência. Não existe tempo nem espaço sem objetos neles percebidos, mas o intelecto é capaz de manipular tempos e espaços de forma pura, abstraindo-os de objetos reais. Isso é a Matemática. Ela opera pelo que Kant denomina construção de conceitos, o processo de exibir numa intuição pura (intuição, em Kant, significa a recepção de objetos pelo aparato cognitivo humano; a intuição empírica é a recepção pelos sentidos, e a intuição pura é presença de um novo objeto apenas pela construção operada com as formas puras da intuição sensível) um objeto correspondente a um conceito, que não veio dos sentidos, mas de uma manipulação do espaço e do tempo de modo puro.
As Ciências da Natureza parecem apresentar um desafio maior para Kant. Isso porque elas estão, por definição, vinculadas à experiência empírica. Como é possível que um juízo empírico deixe de valer apenas para o sujeito que realizou a experiência e adquira validade universal?
Para Kant, isso acontece porque nossos juízos sobre objetos estão moldados por determinadas formas, que não são as formas lógicas, mas formas gnosiológicas. Nós só conseguimos emitir juízos inteligíveis segundo formas universais, que são parte do entendimento humano. Segundo nosso filósofo, há doze formas do juízo, que dão origem a doze categorias (não interessa discutir isso aqui com profundidade).
Assim, no juízo “o sol esquenta a pedra”, o vínculo entre o sol e o aumento da temperatura da pedra é dado por uma categoria particular – a causalidade. A causalidade não é percebida pelos sentidos, mas nós só conseguimos compreender os dados sensíveis quando os unificamos segundo determinadas categorias – uma das quais a categoria causal. Nossa experiência se forma pelas impressões sensíveis, moldadas pelas formas universais do entendimento.
A explicação de Kant para a Matemática e para a Física nos leva ao centro de sua Teoria do Conhecimento. Como vimos, o conhecimento de objetos se inicia sempre na experiência, e nossa experiência é constituída, primeiro, pelas formas puras da sensibilidade (tempo e espaço), nas quais percebemos as coisas; segundo, pelas categorias do entendimento, que unificam os dados dos sentidos de modo a torná-los inteligíveis.
Por isso, o conhecimento, em Kant, é sempre conhecimento de fenômenos, quer dizer, de coisas segundo aparecem a nosso aparato cognitivo. A distinção entre fenômeno e númeno, conforme expliquei em outro texto, não tem nada a ver com a imagem tosca que se fez dela. O fenômeno não é a “aparência da coisa”, distinta da própria coisa, que permanece incognoscível. O fenômeno é a coisa tal qual aparece. Nosso acesso às coisas é mediado por nosso processo cognitivo – não somos Deus, não conhecemos as coisas de golpe. O fenomenalismo de Kant é um fenomenalismo realista. O fenômeno é a manifestação empírica da coisa. O “fenômeno da pedra” não se opõe à “pedra em si”, que permanece misteriosamente oculta, mas é a pedra tal qual aparece e pode ser conhecida por nós.
O longo tempo que perdemos aqui não se destina a uma compreensão em detalhes da Filosofia kantiana da Matemática ou da Física, mas a um estabelecimento de como é possível a Ciência em Kant, o que nos leva ao seu âmbito próprio e aos seus limites.
Seguindo-se esses passos, percebe-se que a Metafísica não pode ser uma Ciência. Não há qualquer fundamento possível para juízos sintéticos a priori em âmbito metafísico. Isso exigiria que tivéssemos acesso às ideias da Metafísica de modo apriorístico por nosso intelecto. Isso, obviamente, não ocorre; o homem não tem intuição intelectual (seria a recepção de objetos diretamente pelo intelecto, sem passar pelos sentidos; aqui sim algo como a intuição no vocabulário da Metafísica clássica, conhecimento próprio dos anjos).
O homem só é capaz de formar um objeto a partir dos dados dos sentidos. Aquilo que escapa completamente à experiência não pode ser reduzido a objeto pelo intelecto humano e, portanto, não pode formar parte de um juízo objetivo. Deus não pode caber no intelecto humano, e por isso não pode ser objeto de uma Ciência.
Por isso, aqui são rechaçadas as demonstrações da existência de Deus próprias da Metafísica racionalista. Os racionalistas tentavam demonstrar Deus por juízos analíticos, de modo completamente a priori, como se demonstra o Teorema de Pitágoras. Isso não é possível. Não se pode demonstrar a realidade de algo a partir do pensamento puro. A mente humana não é capaz de estabelecer uma realidade por si mesma, mas, antes, constata a realidade daquilo que lhe vem dos sentidos. Não se pode partir do conceito à realidade, mas sempre ao contrário.
Kant, aqui, na verdade, coincide com Aristóteles e com Tomás de Aquino. Também Tomás rejeitava as demonstrações a priori da existência de Deus, na versão do argumento ontológico de Santo Anselmo, que vigia em sua época. Se se toma o conceito moderno de Ciência, Tomás concordaria que a existência de Deus não pode ser objeto da Ciência. O estatuto epistêmico de “Deus existe” não pode ser o mesmo de “o sol esquenta a pedra”.
Acontece que, findo o conteúdo da primeira “Crítica”, Kant lhe apõe um breve segundo livro (a “Doutrina transcendental do método”), que contém um texto fundamental chamado “Cânon da razão pura”. Aí, Kant esclarece a totalidade de seu sistema e nos lembra que a “Crítica da razão pura” não é sua filosofia crítica, mas apenas sua primeira parte – uma teoria da Ciência.
O criticismo kantiano é justamente um desafio ao pressuposto universal de todo o pensamento moderno – a coincidência entre a compreensão humana e a Ciência. O que Kant trata de esclarecer é que a Ciência é apenas uma manifestação particular do pensamento humano. O que o homem compreende não se resume ao conhecimento teórico-especulativo.
Kant vem alargar os horizontes do homem moderno, libertando toda a Filosofia de um preconceito inconsciente, que a fazia restringir o pensamento a um único caso particular seu. O sistema crítico é uma catalogação encadeada dos modos de compreensão da razão humana. A “Crítica da razão pura” trata apenas de um deles; a “Crítica da razão prática” trata de outro, e a “Crítica da faculdade do juízo” de um terceiro.
O ponto que permite a virada fundamental para as demais manifestações da razão humana é um fato metafísico fundamental, que, ao contrário das demais ideias, não pode ser negado, pois se apresenta imediatamente à consciência do homem: a liberdade. Todo homem é irremediavelmente consciente de si mesmo como livre, como dotado de uma causalidade absolutamente independente das causas da natureza.
A liberdade não é um fato do mundo físico, não pode ser provada pela experimentação. Entretanto, não é possível ao homem agir salvo pressupondo a liberdade. Nenhum de nós é capaz de atravessar a rua sem pressupor, ao fazê-lo, que poderia não tê-la atravessado. Até mesmo para se negar a liberdade, é preciso pressupor que se é livre para defender tal tese e que os demais são livres para concordar com ela.
A liberdade abre ao homem a porta para o transcendente, que lhe estava fechada na Ciência. Pela liberdade, o homem é consciente de si mesmo como um eu, uma pessoa que se impõe ao mundo desde seu interior, desde fora da realidade empírica. A liberdade conduz o homem diretamente ao mundo numênico, onde pelo conhecimento teórico não podia entrar.
O reino da liberdade é o reino prático. Aqui, o homem não é o sujeito que conhece fatos externos, os quais recebe passivamente, mas o eu que age no mundo, desde uma direção dada pelo interior de sua consciência. E é no mundo prático, por meio da liberdade, que a razão encontrará as respostas para as questões metafísicas pelas quais tão desesperadamente anseia.
Na Ética (aqui, não poderemos descrever todo o percurso da moralidade kantiana), a razão prática descobre que seu objeto natural, aquilo que ela necessariamente aspira realizar no mundo – o sumo bem, a plena conjunção entre a perfeição moral e a felicidade completa – não é realizável neste mundo. Isso porque, neste mundo, a natureza e a liberdade são dois reinos irredutíveis um ao outro. A natureza não opera de acordo com a moralidade. É perfeitamente possível (e corriqueiro) que homens bons tenham câncer, e homens maus sejam saudáveis. Quando há um terremoto, as placas tectônicas em colisão não se perguntam se os homens afetados são virtuosos ou não.
Consequentemente, a única condição sob a qual o sumo bem pode se realizar é que Deus exista e que a alma seja imortal – que exista um Ser sumamente bom, justo e misericordioso, que conheça todos os corações e, ao mesmo tempo, seja o autor inteligível da natureza, capaz de fazer, numa outra vida, o mundo corresponder ao bem moral, recompensando os bens e punindo os maus. Trata-se da chamada demonstração moral da existência de Deus.
Por fim, o sistema se fecha na “Crítica da faculdade do juízo”. A faculdade do juízo é faculdade de subsumir o particular ao universal, fundamental tanto ao conhecimento quanto à moralidade. A faculdade do juízo pode ser determinante ou reflexionante. É determinante quando o universal já vem dado e reflexionante quando ela própria encontra o universal pela atividade reflexiva do juízo humano.
O juízo reflexionante possui dois âmbitos: o estético e o teleológico. Aqui, nos interessa o segundo. O homem, naturalmente, quando reflete sobre as coisas da natureza, é levado a enxergar nelas uma conformidade a fins. A reflexão humana vê naturalmente na natureza um sistema teleologicamente ordenado.
Ocorre que a finalidade é elemento próprio da faculdade da vontade. Por isso, naturalmente passamos de uma teleonomia (sistema de finalidades naturais) a uma teleologia (sistema de fins da razão), e daí a uma Teologia. A reflexão percebe no sistema orgânico da totalidade da natureza uma vontade ordenadora por trás.
Quando essa reflexão se une àquilo que vimos em âmbito moral, somos, enfim, capazes de unificar toda a nossa compreensão numa única visão de mundo, na qual concluímos que o Ser sumamente bom, justo juiz do universo, em que somos levados a crer por nossa constituição moral, deve ser também o autor da natureza que constatamos quando nos pomos a refletir sobre a totalidade do sistema do universo.
Aqui, se encerra o sistema kantiano, com uma reabilitação das demonstrações cosmológicas da existência de Deus, que pareciam desautorizadas na “Crítica da razão pura”. Aqui, porém, elas não são demonstrações a priori, ao modo das provas matemáticas, mas reflexões a posteriori sobre o mundo como um todo, a coroar uma especulação que não partiu de conceitos, mas das realidades mais próximas e acessíveis, para ascender, por um caminho árduo, às verdades últimas.
O sentido da filosofia kantiana é uma expansão dos horizontes da compreensão humana, liberando-a da prisão cientificista. A Ciência, em Kant, é apenas um modo de se compreender o mundo, de se estabelecerem juízos verdadeiros. E não é o principal, nem o mais importante. Pelo contrário, ainda que nos dê uma certeza teórica mais forte (porque trata de objetos mais próximos, mais assimiláveis pelo intelecto humano), ela é incapaz de satisfazer as buscas existenciais mais profundas da natureza racional. Para tanto, é preciso recorrer às duas outras formas de compreensão humana descritas por Kant: o juízo moral e o juízo reflexivo.
Em suma, Kant não só recupera uma Metafísica em linguagem moderna, deslindando a teia de confusões que assolava o pensamento até então, como o faz em termos análogos ao que seria o estatuto da Metafísica no pensamento clássico. Como dissemos, se tivessem acesso ao vocabulário da Modernidade, nem Aristóteles nem Tomás pretenderiam que sua Teologia Natural fosse Ciência. As cinco vias, como demonstrações a posteriori que coroam a reflexão filosófica sobre o mundo, se aproximam muito mais do que em Kant seria a reflexão da cosmovisão do que do conceito moderno de Ciência.
A visão de Kant como o coveiro da Metafísica, que pode exsurgir de uma leitura isolada e fragmentada da “Dialética transcendental”, é, em verdade, o exato inverso da realidade. O filósofo de Königsberg foi o restaurador da Metafísica no coração da Modernidade, o autor da síntese que levou a especulação filosófica a um patamar mais elevado, a partir do qual todo filósofo posterior deverá necessariamente partir.
Boa noite, Gustavo!
Antes de mais nada, gostaria de parabenizá-lo pelos ensaios, que há algum tempo me agradam bastante. Assim como você, nutro grande carinho e admiração por Kant, e partilho com o senhor desta leitura teleológica de sua obra: a razão especulativo é incompleta sem a razão prática que por sua vez é incompleta sem a religião, e esta incompletude se reflete nas obras kantianas, se vistas isoladamente.
Contudo, apresento aqui apenas uma divergência com sua divisão da CRP, quando dizes que: "Para Kant, são três as que se apresentam como tais: a Matemática, as Ciências da Natureza e a Metafísica. Cada seção da primeira “Crítica” trata de uma destas: a “Estética transcendental” da Matemática, a “Analítica transcendental” da Física, e a “Dialética transcendental” da Metafísica."
Ao final da Analítica Transcendental, no "Terceiro capítulo: Do fundamento da distinção de todos os objetos em geral em phaenomena e noumena", lemos em B303 que "Seus princípios são meros princípios da exposição dos fenômenos, e o pomposo nome de uma ontologia, que se arroga a fornecer conhecimentos sintéticos a priori das coisas em geral (o princípio da causalidade, por exemplo) em uma doutrina sistemática, tem de dar lugar ao mais modesto nome de uma mera analítica do entendimento puro". Logo, nosso pensador confessa que o que foi feito na Analítica corresponde ao que sempre se pretendeu chamar de ontologia, indo portanto além da mera Física, dado que não apenas o modo como os objetos físicos existem, mas a sua própria existência tem fundamento no entendimento e nos seus princípios puros. Inclusive, é também nos princípios puros do entendimento que temos o fundamento da aplicação da matemática no mundo sensível, especificamente, como você bem sabe, nos axiomas da intuição, e não na Estética Transcendental que trata mais das condições formais da representação e apreensão dos objetos que nos afetam e correspondem a nossas sensações.