A vida intelectual entrou na moda em certos círculos. A aquisição da “alta cultura” se tornou um dos penduricalhos indispensáveis à constituição de “famílias tradicionais”, que cultivam as “virtudes”, para as quais é condição necessária a “formação do imaginário”. Conhecer as “bases da civilização ocidental” é fundamental para se salvar da bancarrota do “mundo moderno”. A “vida de estudos” nos salvará das ideologias contemporâneas e das propagandas progressistas que visam a desagregar a família, os valores, a religião e o estilo de vida burg... digo, cristão tradicional.
Como tudo que é moda, a vida intelectual se tornou um produto. Gente com notável habilidade de marketing a vende a peso de ouro. Quem entra no mercado das redes sociais, vê-se logo engolido por vitrines chamativas e propagandas apelativas. O senso de urgência é acionado: se quer salvar a sua família das trevas, deve iniciar a sua vida intelectual. Se o problema é grave e alarmante, o vendedor traz consigo a salvação: basta comprar a tal “vida intelectual” – entenda-se, o curso do influencer, que, por uma bagatela (hoje mesmo estamos com preço promocional – mais barato do que um carro zero), ensinará a você como estudar, como ler, como se iniciar nos “clássicos” da alta cultura.
Uma vez que você se endividou no Itaú para encher os bolsos do guru, é apresentado à vida intelectual da Polishop – basicamente, um emaranhado de regras, listas, cursos. A “alta cultura” que você precisa adquirir é algo enigmático, envolto em mistério, só acessível para iniciados. Por isso, você precisa ser guiado – e para isso estão os generosos préstimos do professor do Instagram.
Há uma série de regrinhas e conselhos que indicam o caminho para que você comece a estudar. Há coisas que precisam ser lidas antes que outras. Há livros “obrigatórios”. Há obras que precisam ser lidas em certa ordem, e você só as entenderá depois das explicações do guru. Há, é claro, as importantíssimas listas. O iniciado formulou para você a lista de “clássicos obrigatórios”, rigorosamente ordenada, organizada por temas, período histórico e importância. Tudo isso, sempre acompanhado de “aulas introdutórias”, em que todo o conteúdo será mastigado para você – porque você ainda não é capaz de compreender a fonte diretamente.
Pois bem, a quem quiser ouvir, ensinarei algo de graça: a vida intelectual não está em nenhum desses acessórios fúteis, nem depende disso para nada. Não existe um único modelo de vida de estudos, nem livros obrigatórios, nem ordem obrigatória. Tudo isso é baboseira.
A cultura humana é um campo imenso, com diversas áreas e atividades distintas, da Filosofia às belas artes, das ciências à História. Há uma multidão de temáticas, de formas, de disciplinas diferentes, com objetos particulares. Aquele que queira cuidar de sua formação cultural (e é muito bom que o faça) deve fazê-lo segundo o caminho que mais lhe interessa, mais adequado às suas circunstâncias e necessidades e que melhor agrade o seu próprio intelecto.
Todas as regras inventadas pela turma da “alta cultura” são puras arbitrariedades. “É preciso ler Literatura antes de estudar Filosofia”, “é preciso ler os antigos antes dos modernos”, “é preciso seguir o currículo medieval do Trivium e do Quadrivium”. Cada um deve descobrir seus interesses e objetivos particulares e o estilo que melhor convém à sua rotina concreta.
Ler Homero nunca foi requisito para entender Platão. Kant e Hegel podem iluminar a leitura de Aristóteles tanto quanto o contrário. Estudar Gramática latina pode ser um hobby interessante para alguns, mas ninguém deve se sentir inabilitado para ler uma questão da “Suma Teológica” por não ter cumprido todo o plano de estudos de um dominicano na Universidade de Paris do século XIII.
É claro que a escolha de leituras deve obedecer a critérios de prudência, e uma pessoa mais estudada é capaz de indicar aquilo que não é tão adequado para iniciantes, aquilo cuja compreensão exige alguma maturidade, e assim por diante. Entretanto, há um abismo entre o conselho prudencial normal, que qualquer pessoa sabe buscar em alguém especializado no tema que ela quer estudar, e as regras taxativas, tiradas de lugar nenhum (ou extraídas sem critério de algum contexto completamente diferente do nosso).
Não há listas. Não há livros obrigatórios que “devem ser lidos primeiro”. Não há livros que todos, sem exceção, devem ler. Homero é um pilar definitivo da cultura humana? Sem dúvida, mas também o são Virgílio, Dante, Camões, Shakespeare, Tolstói. O universal – o grego, o latino, o Renascimento – é fundamental? Sem dúvida, mas também o é o local, o particular – que será do erudito brasileiro sem Machado de Assis e sem Villa-Lobos?
Listas são boas quando são puros registros particulares. Uma pessoa com razoável bagagem cultural elabora uma lista que reflete sua hierarquia pessoal, seus pareceres e seu gosto. Tal lista pode ser muito útil, desde que aquele que a consulta não faça dela suas tábuas da lei. A verdadeira função das listas é auxiliar cada um a montar sua própria lista.
A lista é sempre algo pessoal, subjetivo. Cada leitor deve construir a sua própria. Para isso, em vez de adotar um guru particular que vende sua lista como especiaria das índias, faz bem em buscar várias listas, de pessoas comprovadamente expertas nas diversas áreas do saber. A lista apenas proposta como uma experiência individual permite ao novo leitor que busque por conta própria a respeito de cada indicação, prove e, assim, vá identificando, pouco a pouco, aquilo que lhe interessa mais e lhe serve melhor. Uma lista válida é uma lista que reflete a apropriação pessoal daquele leitor particular, que foi aprendendo, com seu próprio intelecto, a encontrar seu próprio tesouro.
O que ler? Não há resposta para isso. É verdade que existem habilidades que todos devem procurar desenvolver – separar o ouro da bijuteria, discernir o que não convém a quem não é especializado, separar o canônico do menos relevante. Dentro, porém, das minas de ouro da verdadeira cultura, não há caminho assinalado. Cada um deve traçar o seu.
Alguém que veja que sua leitura se desenvolve melhor com narrativas curtas faz bem em aproveitar as maravilhas do conto – e mergulhará em Tchekhov e em Borges antes que em Dostoiévski e em Cervantes. Outro que tenha um pendor pelo grotesco e pelo gótico e lhe dê doloroso fastio as histórias de donzelas de José de Alencar tem à sua disposição Flannery O’Connor e Edgar Allan Poe. Um cientista decidido a compreender os debates contemporâneos em sua área se beneficiará mais de uma boa História da Ciência do que de clássicos da Metafísica – e, adentrando a Filosofia da Ciência, lhe servirão mais Heidegger e Thomas Kuhn do que Platão e Aristóteles.
Não, não é obrigatório ler “A vida intelectual”, de Sertillanges (livro que, de fato, é bom, mas que não cumpre nenhum critério para ser considerado “essencial” em nenhum sentido). Você pode ler a “Odisseia” antes da “Ilíada”. Você pode ler um livro de Filosofia sem ter estudado todo o Trivium e o Quadrivium. Nada disso prejudicará o seu intelecto – ao contrário, prejudica muito mais privar-se de boas leituras porque está preso às regrinhas e aos cursinhos do guru.
O grande engodo da “vida intelectual” das redes sociais é representar os clássicos como algo “dificílimo”, “inacessível”, que você, reles mortal, com emprego e família, não conseguirá compreender tão cedo, devendo passar pelas explicações do “professor”. Isso, muitas vezes, serve para ocultar o fato de que o próprio influencer “conhece” de orelhada tudo o que ensina, jamais estudou com rigor as fontes primárias ele próprio, não possui qualquer proficiência comprovada em área alguma, não tem qualquer reconhecimento fora de sua bolha de seguidores.
O caminho do guru é o caminho da escravidão intelectual perpétua, da eterna dependência dos cursos, dos manuais, dos resuminhos. O caminho para a leitura dos clássicos é bem diferente. Ei-lo: tome o livro e leia. Sim, é isso: você não precisa de mil introduções, de simplificações infantis, de aulas genéricas. Você é capaz de ler por você mesmo.
Certa vez, o grande escritor norte-americano William Faulkner dava uma entrevista. O entrevistador comentou que muitas pessoas diziam que não conseguiam entender algumas de suas passagens mesmo depois de ler duas ou três vezes e lhe perguntou o que diria a tais pessoas. “Que leiam quatro vezes”, foi a resposta de Faulkner.
Como entender Kant? Abra o livro e leia. Já li o mesmo parágrafo cinco vezes e não entendi, o que faço? Leia seis vezes. Digo-o com graça, mas com plena convicção da verdade destas palavras. Faça esta experiência. Viver a ocasião de passar dias inteiros numa mesma página é o verdadeiro (e árduo) parto da vida intelectual. Quando você finalmente conseguir virar a página, verá que sua realização intelectual foi muito maior do que qualquer coisa que você “aprenderia” nas lives do seu influencer. Na leitura dessa única página há muito mais vida intelectual do que em quinhentas aulas e manuais introdutórios.
Obviamente, há muitos instrumentos úteis que podem auxiliar a leitura de um texto primário clássico. Um dicionário especializado pode esclarecer o vocabulário do autor. Alguns comentadores podem ajudar a compreensão do texto (ou, ao menos, explicitar as dificuldades universais em sua compreensão). Ler em conjunto, com a ajuda de um professor verdadeiramente especializado no assunto, é sempre a leitura mais frutífera (desde que seja um acreditado especialista no texto em concreto, não um “explicador genérico” de “alta cultura”). Tudo isso é válido como, repito, um instrumento para a leitura do clássico, não como substituto deste. O objetivo é ler o clássico, não a obra “mais fácil” que o comenta.
Ler um texto canônico não é coisa do outro mundo, só para mentes privilegiadas. Isso é mitologia escravizante. Você quer ler “A Divina Comédia”? Você não precisa de um manual de instruções. Se você abrir o índice da obra, verificará que ela se divide em três partes – Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada parte se compõe de trinta e três cantos (uma manifestação da devoção trinitária do autor), aos quais se soma um canto introdutório, totalizando uma centena. Comece pelo primeiro canto, no Inferno. Vá lendo cada um em sequência. Uma boa edição trará notas que esclarecem as passagens mais difíceis. Você, certamente, é capaz de descobrir esse “método” sem precisar pagar alguém que o ensine a ler.
Seguir as “listas” dos professores das redes sociais, no mais das vezes, o afastará indefinidamente da autonomia necessária à vida intelectual. O guru venderá como “obrigatórios” livrinhos supervalorizados como “As ideias têm consequências”, de Richard Weaver, ou as divulgações simplórias de Peter Kreeft. O tempo passará, e você continuará lendo “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, de C. S. Lewis, e nunca terá tocado um diálogo de Platão. Quando você se der conta de que não vive num convento medieval e não tem tempo de voltar à sala de aula para estudar o Trivium e o Quadrivium, terá perdido anos em que você poderia ter lido muito por conta própria.
Para aquele que tem condições, a formação cultural, como desenvolvimento das mais elevadas potências humanas, é parte fundamental de uma vida lograda. Eu recomendo a todos que possam buscar cultivar uma vida intelectual. Contudo, a vida intelectual verdadeira é autônoma, é o desenvolvimento interior do intelecto, que cada um precisa realizar com suas próprias forças. Ser eternamente dependente do que disse ou ensina alguém que você julga mais inteligente é o contrário da vida intelectual, é justamente a morte da alta cultura.
A via que proponho, embora mais “simples”, é muito mais difícil. Assinar uma procuração a um professor que lhe dirá o que você deve ler, como ler, o que você deve entender do que leu permite uma comodidade tentadora. O preço desse luxo é uma ilusão de conhecimento, correntes intelectuais que o mantêm para sempre na caverna, enquanto um projetor abarrotado de lindas imagens de propaganda o convence de que você saiu para a realidade.
Excelente!
"Viver a ocasião de passar dias inteiros numa mesma página é o verdadeiro (e árduo) parto da vida intelectual."
Atualmente estou estudando um livro de Relatividade Geral que me faz passar semanas em poucas páginas, indo e vindo várias vezes! É um prazer que se desfruta aos poucos, sem pressa.
Muito bom!