É fato evidente que a universidade é uma das instituições em crise em nosso mundo cada dia mais líquido. Invadida por ideologias contrárias à própria possibilidade de desenvolvimento do saber, subjugada por interesses políticos e econômicos, perdida na mediocridade autocongratulatória dos diplomas, das papeladas, dos índices, das publicações fast food (declamava T. S. Eliot nos “Coros de A Rocha”: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? / Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”).
Em reação a esse problema real, difundiu-se em certos meios conservadores uma rejeição completa à universidade e a todos os seus institutos. Ouvem-se diariamente frases como “A universidade não ensina nada; é uma fábrica de militantes do MST”, “noventa e cinco por cento dos trabalhos defendidos em universidades brasileiras são marxistas”, “esqueça tudo o que você aprendeu na universidade; são mentiras plantadas para destruir seu país e sua família”.
Se a universidade venera os diplomas e a extensão meramente quantitativa do currículo oficial, como necessidade absoluta para que alguém possa ser levado a sério, os novos conservadores abjuram completamente a titulação universitária, desconhecem o currículo e a experiência acadêmica como algo relevante para qualificar aquele que fala.
Se a universidade se enche de critérios burocráticos oficiais para decidir se uma pesquisa presta (com base não em seu conteúdo, mas na qualificação numérica da revista em que foi publicada e outros indicadores discutíveis), eles zombam do prestígio de publicações afamadas e da própria necessidade de se submeter uma investigação a tribunais acadêmicos (afinal, dizem com orgulho de seu raciocínio brilhante, “Sócrates não publicou nada; hoje, ele seria rejeitado pelas universidades”).
Se a universidade se perde no academicismo e na exigência de ultraespecialização, que fragmenta o conhecimento e reduz à Filosofia à análise filológica, eles se opõem radicalmente a todo critério de cientificidade. Defendem que toda especialização é má, que toda técnica é cega e que “é preciso estudar a realidade, não o que disseram os autores”.
A mentalidade antiuniversitária é simplesmente o vício oposto aos defeitos da universidade contemporânea. Usá-la como remédio para estes é o mesmo que combater a covardia com a temeridade, a gula com a inanição. Tal mentalidade radica numa incompreensão das raízes do conhecimento humano tão ou mais profunda do que aquela de que padecem muitos dos atuais gestores acadêmicos.
Este texto, essencialmente, explora o problema central do modus operandi da guerra cultural, que comecei a enfrentar em meu texto sobre a diferença entre o mestre e o guru e que seguirei enfrentando em textos futuros – a ilusão de um conhecimento em “opção beneditina”, alijado da sociedade e preso em guetos identitários.
O processo que gera o grande edifício do conhecimento humano é uma estrutura civilizacional intrincada, da qual participa a sociedade como um todo e dentro da qual se estabelecem padrões e métodos compartilhados e transversalmente aceitos para reto juízo e aferição da evolução desse mesmo conhecimento.
É por isso que a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles possuíam regras rigorosas sobre a formação de seus membros (que não pisasse ali quem não dominasse a Geometria, era a primeira advertência de Platão) e um projeto político de conformação da sociedade aos padrões de sabedoria recém-descobertos.
É por isso que a universidade medieval impunha um currículo meticulosamente estruturado e vários modelos rígidos de atividades acadêmicas e de trabalhos a serem realizados para as diferentes titulações (o que seriam hoje as teses de doutorado, por exemplo, eram necessariamente comentários às “Sentenças”, de Pedro Lombardo – vejam que deliciosa ironia: Sócrates tampouco seria aceito nos padrões acadêmicos da universidade medieval. Será que isso prova que, já no século XIII, tal instituição era também cega à verdadeira sabedoria, ou que esse “argumento” é sumamente idiota? Difícil decisão...).
E é exatamente por isso que a universidade contemporânea desenvolveu uma metodologia acadêmica rigorosa, na qual os textos oficiais devem ser redigidos, textos esses que precisam respeitar os padrões de tratamento crítico das fontes, de partida do estado da arte, de restrição metódica do objeto que foram aprimorados nos últimos séculos. Alguns desses critérios, certamente, são questionáveis e, quando absolutizados, podem se transformar em camisas de força que asfixiam a visão universal e o desejo criativo de evoluir.
Entretanto, todo eles têm uma razão de ser, que jamais pode ser abandonada: preservar um processo universalmente difundido e aceito de discussão racional e de produção de conhecimento. Por pior que seja o estado atual das universidades, no Brasil e mundo afora, ainda é dentro delas que se trava contato com o estado da arte das discussões nas mais variadas áreas, que se conhece o maior número de enfoques diferentes em embate, que se ouvem todos os argumentos – mesmo que os mais famosos e difundidos sejam aqueles que se querem combater; aí é possível ouvi-lo da boca de seus mais preparados defensores, e isso é indispensável para compreendê-los profundamente, etapa sem a qual qualquer contraposição ou refutação será gritaria triunfalista de surdos.
A universidade não é, em si mesma, essencial ao conhecimento. A universidade surgiu no século XI. Até então, o homem sempre conheceu. Se a universidade vier a perecer (e, infelizmente, é preciso ser justo, seus ocupantes e defensores estão contribuindo para esse futuro possível), o conhecimento seguirá, em outras instituições e por outras vias que surgirão. Contudo, hoje em dia, não existe ainda alternativa saudável que respeite a razão de ser das instituições científicas que acabo de descrever.
Os think tanks e as redes sociais, até o momento, apenas reproduzem uma estrutura de gueto, que forma autodeclarados “intelectuais” que desconhecem completamente o mundo fora de sua bolha, jamais enfrentaram um pensamento contrário cara a cara, com possibilidades de compreendê-lo existencialmente, não fazem ideia do que se produz fora de seu grupinho e são completos desconhecidos a partir de cinco metros além da cerca de seu redil.
Sócrates foi Sócrates porque não deu aula apenas a embevecidos e ingênuos Glaucos, já convencidos de sua superioridade como mestre, mas a vida inteira debateu com os adversários mais radicais de suas teses (algumas vezes, sem conseguir dar uma resposta final ao problema; ao menos em uma ocasião, derrotado).
Os guetos ideológicos (de qualquer coloração ideológica, progressista ou conservadora, tomista ou marxista) privam seus membros do contato com o mundo real. Os pensamentos contrários são sempre apresentados pelo filtro de uma rejeição a priori. Todos se convencem rapidamente de que possuem o melhor, de que estão mais próximos da sabedoria e de que são pobres coitados os que não têm acesso aos conhecimentos ocultos, privilégios de seu guru particular.
Os que vivem fora da universidade não fazem ideia do estado da arte das discussões teóricas. Creem piamente no que lhes dizem seus mestres e o tomam como verdade absoluta. Desconhecem completamente se aqueles argumentos já foram confrontados e refutados e ficariam sem reação se tivessem que defendê-los contra uma crítica bem fundamentada.
Quando confrontados com a óbvia realidade de que a “sabedoria” repetida em sua bolha é mais frágil do que a marcação brasileira contra a Alemanha em 2014 e de que seria facilmente rechaçada num confronto franco dentro de uma arena universitária, assustam-se e, não raro, se indignam.
Quando eu atestei que não existe o fenômeno que é chamado por aí de marxismo cultural, houve uma surpresa geral, como se eu estivesse dizendo algo muito diferente, uma grande inovação. Na verdade, nem eu nem meus companheiros de universidade jamais ouvimos falar de qualquer trabalho acadêmico sério que defenda a existência de qualquer coisa semelhante ao que o discurso conservador banal chama de “marxismo cultural”. No mínimo, é forçoso dizer que o ônus argumentativo é de quem o afirma, jamais o contrário.
O conservador antiuniversitário não sabe disso, pois passou a vida inteira ouvindo denúncias sobre o tal marxismo cultural, escutou centenas de aulas ensinando que o progressismo da esquerda pós-68 é uma “transposição do marxismo de pautas econômicas para pautas culturais” (o que é um desconhecimento vergonhoso tanto dos textos marxistas e das bases teóricas do progressismo quanto da dinâmica factual dos movimentos de esquerda nas últimas décadas).
Tal conservador nunca leu Foucault, mas tem certeza de que era um imbecil, facilmente refutado pelo estudo do capítulo correspondente de algum livro de Roger Scruton. Está igualmente convencido de que Chesterton refutou Nietzsche. Não tem a menor ideia dos patamares em que se encontram os pensadores. Julga-os de ouvido, segundo a simpatia ou antipatia política que lhe ensinaram no gueto. Aprendeu que Foucault e Nietzsche são inimigos e, se são inimigos, só podem ser homem superficiais, facilmente destruídos por algum folhetim conservador de fácil acesso.
Se os arautos da “morte da universidade” encontrassem um bom doutorando em Foucault, de qualquer universidade brasileira de ponta, seriam esmagados em menos de cinco minutos. Não restaria nem pó de seus Scrutons e Chestertons. Se, ao final, não se convertessem eles próprios ao progressismo, seria apenas por orgulho e apego identitário, não por qualquer motivo racional.
Durante minha graduação e mestrado, passei sete anos na universidade pública brasileira (depois, fiz meu doutorado numa universidade particular na Espanha e, desde então, leciono também em privadas, no Brasil e no México). Vi muitos problemas, mas nunca a tal “terra arrasada”, “escolinha do MST”. Há muita gente séria. Alguns estudando grandes filósofos que me interessam, outros estudando filosofias das quais discordo. Mesmo estes últimos, porém, produzem coisas muito melhores do que suas “refutações” por pseudointelectuais antiuniversitários.
Evidentemente, aqui, falo muito mais da minha área – a Filosofia –, que é o que conheço melhor. Nela, é patente e indisfarçável a total ignorância a respeito da própria existência de institutos como o estado da arte, as edições canônicas, os patamares científicos. Deparo-me todos os dias com gente que se dispõe a falar de Kant sem fazer qualquer ideia do que a literatura atual está discutindo sobre ele, das atualizações mais recentes na edição oficial de suas obras, dos novos problemas levantados.
Não veem problema em repetir, por exemplo, o que disse Hegel sobre a ética kantiana ser um “formalismo vazio”. Não sabem que fazê-lo é o mesmo que querer discutir Física tendo em mãos apenas os “Principia” de Newton. Não desconfiam que, desde Hegel, publicaram-se inúmeros textos de Kant que antes não circulavam, aos quais os críticos do século XIX não tinham acesso, nem que a produção de comentários especializados das principais universidades do mundo há muito superou tais análises reducionistas e trouxe à luz muitos outros elementos na obra do iluminista de Königsberg.
Em seu mundo, seus mestres são efusivamente aplaudidos por mostrar toda a inépcia de Descartes e de Kant e por condenar definitivamente toda a filosofia moderna como uma besteira ideológica. Se ousassem sair dele e entrar num congresso com universitários de primeiro time, assim que deixassem entrever que sequer conhecem quais são as edições canônicas das fontes primárias dos autores “refutados”, provocariam uma estrepitosa gargalhada, a revelar-lhes o insuportável segredo de que sua inteligência é a roupa nova do rei – só podem vê-la seu dócil rebanho.
A universidade, repito, é uma instituição desgastada por inúmeros problemas, que já listei. Entretanto, ainda é o único espaço em que se conhece, mesmo que parcialmente, o estado da arte e se tem acesso aos argumentos mais discutidos e estudados no mundo inteiro (muitas vezes, com grandes dificuldades uma vez que o sequestro ideológico também sufoca os ambientes universitários e os aproxima dos guetos que descrevi).
No momento, a alternativa à universidade é o Instagram. E este é capaz de gerar néscios ideologicamente cegos à realidade três vezes piores do que aqueles que vêm das faculdades. Não sei qual será o futuro do conhecimento, mas certamente não o encontraremos onde não houver estado da arte, requisitos metodológicos amplamente aceitos por comunidades universais, confronto franco com o diferente. A civilização não floresce em bolhas.
Finalmente, um texto sóbrio em meio ao mar de gritaria de todos os lados na internet!
Excelente Gustavo! O discurso para a formatura de Vermebile, “Fitafuso propõe um brinde”, de C.S. Lewis é muito pertinente sobre a questão que você apresentou!